Chamem-lhes nomes

Dois dias de chuva intensa foi quanto bastou para inundar os arredores de Coimbra. A circulação na linha do norte esteve interrompida durante dias!

Impressionante. O Mondego invadiu a Bencanta como não há memória. Dois diques cederam e o manto de água a montante e a jusante de Coimbra fez temer pelas piores cheias de idos anos – em Montemor-o-Velho, que desde sempre as viveu mas já lhe perdera o hábito, e em sítios, como a Bencanta, sem memória delas.

A linha do norte ficou submersa (em Alfarelos) e a circulação esteve interrompida durante dias, em plenas vésperas de Natal, num país desenvolvido…

Mais a sul, em Constância, onde o Zêzere se encontra com o Tejo, foi mais o susto. Mas já um pouco a norte, tanto em Águeda, onde o Tâmega mergulhou a baixa, como em Aveiro, a que o Vouga chegou a cortar todos os acessos menos o da mais longínqua A1, a coisa foi mais feia.

O Ribatejo, desta vez, safou-se das tragédias que tão bem reproduziram Soeiro e Redol: afinal, o leito quase deixado a seco pelos transvazes espanhóis acabou por ter pelo menos essa vantagem.

A verdade é que dois dias de chuva chegaram para transformar um país em seca num país a transbordar de água.

Como bastaram mais três dias de sol para fazer perceber que, ou volta a chover a cântaros, ou a seca ainda será mais rigorosa lá para o próximo verão. Porque pode ter chovido muito uns dias, mas não choveu o suficiente, nem coisa que se pareça.

O mal foi, sobretudo, da depressão Elsa. Sim, porque agora as depressões, tempestades, ciclones, na Europa também já têm nome – como os tornados e os furacões do Pacífico, do Índico e do Atlântico, sobretudo sul e central, ou do mar das Caraíbas.

Mas não é por terem passado a beneficiar de personalidade própria – ou, pelo menos, de nome – que passaram a ser mais castigadoras ou devastadoras.

Há muitas outras razões. A começar pelas margens dos rios, sem árvores nem florestação, consumidas pelos incêndios, que sedimentem as terras e consolidem os leitos.

E a acabar na falta de estratégia e de investimento de longo prazo em infraestruturas capazes de dotar o país de meios de gestão dos seus recursos naturais, e nomeadamente da água.

Este país continua exatamente como estava há décadas, se não mesmo há séculos: isto é, totalmente impreparado para a seca – e dependente da gestão dos grandes rios internacionais pela vizinha Espanha – e incapacitado no que reporta à gestão e controlo da água quando abunda.

Com consequências duplamente prejudiciais no que a esta se refere. Por um lado, porque não há capacidade de armazenagem quando vem em excesso: não há barragens nem diques que permitam uma eficaz política de transvazes de norte para sul. Por outro lado, porque, assim sendo, não há alternativa à abertura das comportas quando atinge as quotas toleradas pelas principais barragens, tornando inevitáveis os desperdícios de água em catadupa e o arrasador transbordar dos leitos.

Espanha já se precaveu faz anos. Portugal, se já teve alguns planos, nunca chegou sequer a pensar em implementá-los – tirando vãs promessas de um ou de outro governante, nada foi feito.

Ora, quando estão tanto na moda os temas das alterações climáticas e os debates sobre o que deve ser e o que não deve ser feito para salvar o planeta do desastre anunciado para as próximas décadas, mais razões haveria para não estarmos tão conformadamente inativos e sem respostas para as partidas que o clima sempre nos pregou, continua a pregar e muito mais nos há de pregar.

E se ainda por cima continuarmos a não aproveitar, antes a desperdiçar, as dádivas que o clima nos dá, nomeadamente quando cai água em abundância, então pior ainda.

A verdade é que, se ainda lhe juntarmos a erosão da costa, a pressão sobre as arribas e a subida do nível do mar, então, sim, podemos começar a ter noção do que nos espera e que tanto já preocupa estudiosos (como, por exemplo, da Universidade de Aveiro) e nos devia preocupar a todos.

Se já assim é o que é – e veja-se o assustador galgar da marginal pelo mar em Espinho (mas o risco é igual ou maior em Esmoriz, no Furadouro, na Costa Nova, na Vagueira, ou até na ilha de Faro ou na de Tavira) -, imagine-se o que será daqui a muito poucos anos.

Aveiro, que ainda no fim de semana passado, mesmo sem marés vivas, viu a ria subir a níveis incríveis e a água transbordar pelas sarjetas e pelas tampas das condutas de águas pluviais, corre sérios e gravíssimos riscos. Como a italiana Veneza, que ainda este outono passou pelo que passou.

Não deixa de ser curioso que os países que mais parecem estar preparados para a subida do nível do mar sejam aqueles que estão… abaixo do nível do mar (os holandeses Países Baixos). E que os mais vulneráveis sejam aqueles, como Portugal, que nada investem em planeamento estratégico e estrutural.

Tudo o resto é música para os ouvidos do povo. Seja o corte da carne de vaca nas cantinas universitárias de Coimbra (onde, por mera coincidência, rebentaram os diques); sejam as receções à pequena Greta; sejam os nomes das depressões ou ciclones.

Os nossos líderes políticos estão demasiado preocupados com o curto prazo, com a eleição seguinte, com os resultados imediatos. Se há quem diga «mudem-se as aldeias», porventura há de chegar o dia em que alguém ouse dizer ‘mude-se o país’.

Nesse dia, talvez voltemos a acreditar.

Até lá, resta-nos chamar-lhes nomes.