‘Isto não é só a natureza, em Lisboa fizeram asneiras’

Em Montemor-o-Velho todos rejeitam a «deslocalização». E «os senhores de Lisboa» que estão «sentados à secretária» são muito criticados. 

José Pardal passeia, cabisbaixo, pelo pátio da sua casa. Enverga o casaco e as galochas de trabalho, e traz consigo o ar de desalento que carrega desde a madrugada de segunda-feira, 23 de dezembro, quando as águas do Mondego lhe invadiram a casa, no lugar de Lavariz, em Montemor-o-Velho. «Isto aqui foi um autêntico inferno. A água atingiu uma altura de 84 centímetros em apenas 20 minutos», recorda. José Pardal vive neste local desde sempre. Tal como acontecera com os seus pais e avós. A casa fica junto aos campos do Baixo Mondego, ainda totalmente submersos pelas águas que ali chegaram depois do colapso de dois diques. «As cheias não são uma novidade», mas é notório como a luta contra a natureza tem vindo a endurecer a reboque das alterações climáticas. 

«O meu avô contava-me histórias das cheias. Até fez uma inscrição ali, na parede da casa antiga, para assinalar o nível das águas da maior cheia da sua época», aponta. A linha lê-se na perfeição, datada de 21 de janeiro de 1948, apenas a 15 centímetros do solo. «Veja bem como as coisas estão a mudar», lamenta José Pardal. «Desta vez, a água subiu mais 70 centímetros», algo que nunca vira, nem sequer nas cheias de má memória de 2001. «Mas não me venham falar de deslocalizações», avisa, com os olhos brilhantes de quem está habituado a resistir e a recomeçar tudo de novo: «O ministro do Ambiente disse que devíamos mudar de sítio e eu pergunto: Como é possível mudar terras inteiras e as suas populações para outro lado?». «Olhe, se o ministro quiser vendo-lhe a minha casa. Estou a pensar ir viver para o castelo de Montemor-o-Velho», ironiza.

As águas do Mondego começam  a recuar lentamente, depositadas nos campos, mas ainda deverá demorar várias semanas até que se confinem ao leito original. Pelo pátio de José Pardal é um vaivém de gente – amigos, vizinhos e curiosos -, que querem ver como foi ou como  é a fúria da natureza. 

Mas «isto não é só a natureza», acusa José Pardal: «Os senhores de Lisboa, sentados à secretária, fizeram muitas asneiras e contribuem para que isto aconteça». 

As visitas ouvem e aprovam a sentença com entusiasmo – as acusações são dirigidas à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), responsável pela gestão do caudal do rio. Na vizinha Carapinheira, sede da freguesia, as conversas de café continuam a ser dominadas pelos acontecimentos dos últimos dias. Carlos, António e Paulo conversam em roda, usando da sabedoria que a vida lhes deu. «Já olhou bem para o rio Mondego? Aquilo está cheio de troncos e isso aumenta o caudal», diz um. «Não, não, a culpa é principalmente das obras de desassoreamento no açude-ponte, em Coimbra», responde outro. «E porque razão a EDP não fez pequenas descargas na barragem da Aguieira uns dias antes?», ouve-se perguntar de rajada o terceiro. 

Neste diálogo, como em outros que por ali acontecem, são muitos os que falam e apontam de forma unânime os culpados – apontam em duas direções: o céu, lá em cima, e a capital, lá em baixo. Para os populares, as soluções são «com quem manda nestas coisas». «O ministro e a APA que resolvam o problema», afirmam aqui e ali. Disto, todos fazem voz e aceitam. 

Mas não é o que já está a acontecer? Afinal, o primeiro dique começou a ser reparado esta sexta-feira e o ministro do Ambiente espera concluir as obras em dois meses. Há quem sorria e há quem revire os olhos. Há ainda quem use das mão para afastar maus pensamentos: «Mas alguém acredita nisso?» 

Um pouco mais acima, junto à Igreja Matriz, batemos à porta da Junta de Freguesia. O presidente Victor Pardal Monteiro não larga o posto desde a chegada das águas. «Na segunda-feira tivemos de tirar das suas casas nove pessoas. Foi uma noite sem dormir», recorda.  Para o futuro, o autarca aponta para «uma manutenção mais eficaz dos diques».