O ano em que o Natal ficou louco: 1963

‘Crazy Christmas!’, berraram os jornais. O ‘Boxing Day’ mais produtivo de sempre: 66 golos em dez jogos. O campeonato inglês viu de tudo um pouco. De um 8-2 a um 10-1.

Uma chuva diluviana assolou a Grande Ilha para lá da Mancha. Um burilador de  palavras experimentou um poema em páginas de jornal: «Britain had witnessed something chaotically beautiful, out of the ordinary and unpredictable». Dia 26 de Dezembro de 1963: «Boxing Day». Já não devia haver muitos criados de famílias burguesas ou pequeno-burguesas a carregar para casa os restos da ceia da véspera dos patrões endinheirados. O tempo mudara a sociedade como muda todas as coisas à face da Terra com a sua passagem inexorável que só o espaço pode impedir, a acreditar nas teorias do velho Einstein. A malta aproveitara o tempo livre para demandar os estádios sem imaginar sequer o que estava para acontecer.

A tempestade de golos bramiu por toda a parte, de Londres a Nottingham e de Blackpool a Sheffield. Se no ano anterior a neve impedira a realização dos jogos durante vários dias, frustrando as expectativas, desta vez até a metereologia se mostrava de feição. Quase tudo o que pode acontecer no mundo do futebol aconteceu nessa tarde. E não foram apenas os 66 golos em dez jogos da principal Liga de Inglaterra. Foram, igualmente, os 160 apontados nos 40 jogos das divisões inferiores que tiveram lugar na mesma data.

É possível que os deuses menores do universo, aqueles que dedicam à bola, a mágica senhora das paixões, toda a sua atenção, tenham resolvido brincar entre si, enfeitiçando jogadores a torto e a direito. Graham Leggat (Fulham), Andy Lochhead (Burnley) e Rogert Hunt (Liverpool) foram as principais vítimas. Agradavelmente vítimas: marcaram quatro golos cada um na jornada mais prolífica da história de Inglaterra. Bobby Howfield (Fulham), Fred Pickering e Andy McEvoy (Blackburn), Jimmy Murray e Matt Gray (Manchester City), Dave Wilson (Preston) e Alan Morton (Lincoln) foram mais modestos e contentaram-se com hat-tricks.

Em Craven Cottage ouviu-se o mais sonoro dos trovões. O Fulham entreteve-se a dissecar o Ipswich e ganhou pela redonda marca de 10-1. Leggat foi, como vimos, um dos enlouquecidos do dia e levou a sua insanidade ao ponto de marcar três dos seus quatro golos no espaço de três minutos. Não contentes por terem virado o futebol do avesso, as pequenas divindades brincavam com as estatísticas. E davam cabo do juízo ao velho e saudoso Bobby Robson, essa figura inesquecível que, sentado no banco do Ipswich, não sabia ao certo o que fazer da sua vida. Recompôs-se. Dois dias depois recebeu o esfomeado Fulham e ganhou por 4-2.

 

Requintes de malvadez

Turf Mor: casa do Burnley. O Manchester United é tombado lá do alto do seu gigantismo. Desaba com estrondo, perdendo por 1-6. É preciso dizer que, ao tempo, a semana do ‘Boxing Day’ era pincelada com requintes de malvadez. Porquê? Porque virava o campeonato, da primeira para a segunda volta, e estabelecera-se que a segunda volta se iniciava com os mesmos confrontos que fechavam a primeira. Era quase como uma eliminatória a duas mãos. No caso do Manchester United, a revanche foi à medida. Ganhou 5-1 ao Burnley dois dias depois, em Old Trafford. Um rapazinho de 17 anos, trazido por Sir Matt Busby para a equipa principal, fez um dos golos do United. Chamava-se George Best. Era o seu primeiro.

Em Nottingham, o Forest chegou ao intervalo a vencer por 3-0 mas permitiu que o Sheffield United recuperasse para 3-3 no segundo tempo. Em Sheffield, o Wednesday não se deixou enganar: chegou aos 3-0 perante o Bolton e assim se deixou ficar.

O líder do campeonato era o Blackburn Rovers. Já tinha aplicado uma acabrunhante chapa 7 ao Tottenham e não sabia o que era a derrota desde Outubro. No Boleyin Ground tratou de mostrar que nada disso fora por acaso. Logo aos 7 minutos, Fred Pickering inaugurou o marcador e reduziu o West Ham à sua insignificância. Depois foi o colectivo a reduzir o adversário a mais do que simples insignifância: transformou-o em escombros, arrasando-o por 8-2. 

Apesar da demonstração de força, o Blackburn foi-se apagando ao longo do campeonato e escorregou pela classificação abaixo até a um banalíssimo sétimo posto. O campeão viria a ser o Liverpool que recebeu e massacrou o Stoke City por 6-1. Roger Hunt, o goleador de serviço, limitou-se a ser ele próprio. Afinal, nessa época marcou mais de um terço dos 92 golos da equipa. Durante oito anos consecutivos foi o melhor marcador dos «scousers». Justificava o motivo porque se tornara num dos meninos bonitos do treinador Bill Shankly.

Cerca de 70 quilómetros a norte de Anfield, em Bloomfield Road, o Chelsea despachou o Blackpool com uma perna às costas. O Daily Mirror caiu no exagero de fazer uma manchete panfletária: «This was a massacre. Everyone could have gone home at half-time». Basta olhar para a tebela dos resultados para saltar à vista que, massacre por massacre, houve outros mais dignos de primeiras páginas.

O West Bromwich Albion era treinado por outra personagem bem nossa conhecida: Jimmy Hagan. E os seus jogadores estavam em brasa por Hagan os obrigar a treinar de calções e manga curta no pino do Inverno. Na véspera de receberam o Tottenham, fizeram publicar um protesto: «We are fed up with old-fashioned training methods and being treated like schoolboys instead of intelligent individuals». As queixas não impediram um jogo empolgante: 4-4! Rajadas do vento da loucura pareciam ter varrido o futebol em Inglaterra…