John Baldessari. Uma vida inteira nas trincheiras da arte

Morreu, aos 88 anos, o gigante afável da arte conceptual. Baldessari jurou nunca mais fazer arte aborrecida e descrevia-se como um híbrido entre um formalista e um moralista.

Maldito artesanato! Este chegou a ser um uivo que se ouvia entre os cumes da arte contemporânea, e John Baldessari muito fez pela superação do artesanato, pela ideia de que o artista faria bem em perder menos tempo com o aspeto oficinal das obras, os trabalhos manuais, e concentrar-se nas ideias, nessa grande razão que faz tremer os limites do conhecimento. Foi como explorador dessas zonas de fronteira onde a nossa conceção da realidade mais sofre abalos que Baldessari se tornou um dos mais influentes artistas modernos, e sem nunca precisar de gritar. Beneficiava da imponência dos seus mais de dois metros – chamavam-lhe o afável gigante da arte conceptual -, e podia falar naquele tom de calma compenetração, tendo a certeza de ser escutado. E não era só a figura, havia uma inquietação, uma formidável irreverência na forma como levantava questões, impunha fascinantes peripécias, sem que a permanente crise desse lugar a uma forma de exasperação. Em tudo, a orientá-lo, havia como que um humor cósmico, que lhe permitia estar investido nos seus projetos artísticos e demandas, sem propor uma revolução já para amanhã. 

Numa espécie de manifesto que escreveu em 1982, intitulado What Thinks Me Now (Aquilo Que Agora Me Pensa a Mim) abriu todas as portas, criou uma tal corrente de ar que se mantém produtiva até hoje. Lembremos algumas dessas proposições, motes, versos de uma ode de tom whitmaniano, com vista a inspirar a ação: «Eu quero re-encantar e re-mitologizar./ Eu quero perfurar o solo da arte bem fundo para descobrir a sua mítica infraestrutura./ (Estou menos interessado na forma que a arte assume do que no significado que uma imagem evoca.)/ (Estou interessado na arte como uma maneira de conhecer.) […] (Antes prefiro descobrir as memórias da alma do que estar correto ao nível do pensamento.) […] Quero pensar na história de modo a que não seja um registo de acontecimentos mas um método de libertação./ Quero ver o mundo como algo mais do que uma progressão em série. […] Quero pensar no tempo como algo sincrónico. […] Quero evitar o tédio do sectarismo e dos dogmas. […] Quero erotizar o tempo, a consciência e a cultura humana».

John Baldessari morreu no passado dia 2, aos 88 anos, durante o sono. Tendo mantido uma relação próxima com Portugal, estava incluído no rol de artistas permanentes da Galeria Cristina Guerra, e, em 2004, mostrou no CCB o projeto Drift, que assinou em conjunto com Julião Sarmento e o nova-iorquino Lawrence Weiner. Em conversa com o SOL, Julião Sarmento contou que tinha já uma enorme admiração por Baldessari quando o conheceu, e lembra que, por esses dias, o artista era já uma estrela absoluta, mas que nada disso havia afetado a sua atitude. «Era alguém sem quaisquer sinais de soberba, de uma modéstia natural, que estava em linha com a forma livre e despojada de pensar a arte», recorda Julião Sarmento.

Sendo um artista que gostava de comparar mitologias, trabalhar a partir delas, até para desconstruí-las, tinha uma espécie de mito fundador. Em 1970, pegou numa série de quadros semiabstratos que havia pintado alguns anos antes, levou-os para uma morgue em San Diego, e puxou-lhes fogo. Um ano mais tarde, fez uma exposição com os restos e chamou-lhe Projeto Cremação. Dali em diante, não quis mais ficar limitado pelos suportes ou por noções tradicionalistas, e se não abandonou a pintura, nessa sua segunda vida como artista, quis intervir de forma mais direta, mais cirúrgica e também mais estratégica, recolhendo material nas revistas, trabalhando sobre anúncios, usando polaroides, fotografias tiradas por outros, servindo-se de frames de filmes, e cruzou tudo isso, trabalhando com vídeo, escultura, gravura, instalações, criando incitantes composições em que imagem e texto elaboram um campo de tensões de modo a pôr em causa a cultura de massas. No manifesto atrás referido, Baldessari dizia: «Eu quero ver a linguagem como uma forma de articulação do limitado de forma a expressar o ilimitado».

Depois do episódio da fogueira purificadora, Baldessari viria a fazer uma exposição cujo título se tornou uma espécie de mote para todo o trabalho que dali em diante o ocuparia: «Não volto a fazer arte que aborreça». Estava empenhado em fazer uma arte que lida com essas zonas nevrálgicas, servindo-se do bisturi e de um grande cuidado para, depois, gerar subtis infeções, acabando a coser tudo com a magistral linha do seu humor que muitas vezes raiava o nonsense. Numa época como a nossa, dominada pela reprodutibilidade técnica, pela lógica de superprodução e consumo que o capitalismo impôs, Baldessari definiu-se como «um híbrido entre um formalista e um moralista», alguém que estava pouco interessado em ajudar a atravancar ainda mais os museus com monos, preferindo uma abordagem mais desapegada, mais voltada para a comunicação e para a discussão de ideias. Por isso se virou para o ensino. Começou a dar aulas no Califórnia Institute of the Arts, no início da década de 1970, e sinal do impacto que tiveram as suas ideias noutros artistas é o facto de se ter tornado amigo e mentor de tantos. De resto, indo consultar as pautas das turmas que orientou, logo se destacam os nomes de alguns dos principais artistas contemporâneos em atividade. Entre outros, David Salle, Tony Oursler, Matt Mullican, Jack Goldstein, Jim Shaw, Mike Kelley, James Welling, Meg Cranston, Liz Larner, Mungo Thomson, Kerry Tribe, Elliott Hundley e Analia Saban.

Baldessari acreditava que as escolas de arte eram «os últimos bastiões do pensamento democrático», e tinha uma visão muito crítica da forma como o mundo da arte se deixou corromper pelo dinheiro. Numa entrevista que deu em 2012, Baldessari lembrou que, quando iniciou a sua carreira, não passava pela cabeça dos artistas enriquecerem. «Fazias o que fazias porque acreditavas no trabalho. O dinheiro não entrava na equação. Agora, só o dinheiro é que importa». O magnata do imobiliário Jordan D. Schnitzer, um dos maiores colecionadores de arte nos EUA, e que tem 276 obras do artista californiano, disse que sempre achou significativo o desapego de Baldessari pelo dinheiro. «Uma das razões porque tenho tanto respeito por ele é ele ter passado tantas décadas nas trincheiras… Chegou a ter três ou quatro empregos ao mesmo tempo; e andava a dar aulas de arte. A fama só chegou muito mais tarde, e ele é bem mais modesto do que muitos artistas mais novos que são acima de tudo merchandisers brilhantes», disse Schnitzer ao LA Times, em julho do ano passado.