Rússia. O eterno Putin

A demissão de todo o Governo russo visa manter no poder o Presidente da Rússia, que controla o país há 20 anos.

Rússia. O eterno Putin

De uma assentada, o Governo russo foi esvaziado, com uma demissão em massa, esta quarta-feira. A manobra surpreendeu os observadores internacionais, mas o objetivo rapidamente se tornou claro: abrir caminho a uma reforma constitucional, prolongando o poder do Presidente Vladimir Putin, de 67 anos, que não pode recandidatar-se em 2024 devido à limitação de mandatos. A proposta foi feita pouco antes da demissão do primeiro-ministro, Dmitry Medvedev, e deverá ser apresentada em referendo aos eleitores russos, entre os quais a imagem de Putin, como homem forte, desfruta de grande popularidade.

«Uma reforma quase estrutural», que «altera a longevidade do poder político na Federação Russa», assegura ao SOL Sónia Sénica, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI), especializada em política russa. Trata-se de «uma transferência de poderes do Presidente para a câmara baixa do Parlamento, a Duma, que passa a poder nomear um novo Executivo», explica a investigadora. Coincidentemente, a reforma surge quando a presidência fica vedada a Putin, mas este mantém controlo da Duma através do seu partido, o Rússia Unida, com 341 dos 450 deputados.

Além disso, a proposta também reforça os poderes do Conselho de Estado, criado por Putin e encabeçado pelo próprio. É mais fácil do que remover o limite de dois mandatos presidenciais, o que certamente seria controverso – no início de 2019, a popularidade de Putin desceu até aos 33,4%, segundo sondagens estatais russas, antes de regressar à casa dos 60%.

A súbita demissão de Medvedev, há muito visto como alter-ego de Putin, pode indicar um desentendimento político entre os dois (ver texto ao lado). Mas também permite que o Presidente leve a cabo «com alguma tranquilidade» as suas reformas constitucionais, facilitando a habitual «rotação cíclica, o chamado jogo de cadeiras», nas palavras de Sénica. Nas últimas duas décadas, no rescaldo da queda da União Soviética, Putin já foi primeiro-ministro de Boris Yeltsin, teve dois mandatos como Presidente, um como primeiro-ministro, seguido de mais dois mandatos presidenciais. Após 2024, «pode até ocupar novamente o lugar de primeiro-ministro, ou indicar quem o ocupe», prevê Sénica. Algo em que «terá o apoio do Parlamento, obviamente».

 

Novo fantoche?

Neste cenário, de Putin como poder por detrás do Executivo, a escolha de Mikhail Mishustin para primeiro-ministro, pouco depois da demissão de Medvedev, é sintomática disso mesmo. Ex-ministro das Finanças e desde 2010 diretor da agência fiscal russa, Mishustin, de 53 anos, forjou uma reputação de tecnocrata talentoso – mas desconhecida da maioria dos russos.

No exterior a situação é a mesma: o novo primeiro-ministro nem sequer tinha página em inglês na Wikipedia até esta quarta-feira de manhã, avançou a CNN. Isso não o impediu Mishustin, que jogou hóquei no gelo com Putin em várias ocasiões, de receber os votos de 383 deputados, com o apoio unânime da Rússia Unida – e nenhum voto contra.

À semelhança de outros dirigentes à volta de Putin, a idoneidade do novo primeiro-ministro é questionada, sobretudo desde que foi nomeado. Segundo o site de jornalismo de investigação Proekt, citado pelo Guardian, nos últimos dias desapareceram registos de propriedades de Mishustin, avaliadas em quase 10 milhões de dólares (cerca de 9 milhões de euros) – subitamente, passaram a ser listadas como propriedade do Governo.

«Mishustin foi um ‘servo do povo’ durante 20 dos últimos 22 anos», escreveu Alexei Navalny, o mais conhecido dirigente da oposição russa, num relatório dos seus investigadores. «Como raio é que ele é tão rico?», questionou. «Ele sabe como equilibrar os interesses tanto dos seus negócios como do Estado», respondeu Alexei Kudrin, antigo ministro das Finanças russo.

«Navalny é o caso paradigmático de uma oposição que tem tentado influenciar o regime com algumas manifestações e discursos», afirma Sénica, acrescentando que os seus apoiantes são sobretudo «pessoas muito jovens, que se informam pelas redes sociais», com «algum apoio fora do país».

Claro que isto «não lhe dá capacidade política para avançar no imediato», assegura a investigadora, que vê a oposição russa como «uma oposição ténue, que não tem conseguido suplantar os índices de popularidade do Presidente». No caso de Navalny, não ajuda que tenha sido várias vezes detido e impedido de concorrer a cargos políticos. Além de que «a grande maioria dos media russos, na atualidade, tem dado uma grande visibilidade ao Presidente, digamos assim», considera Sénica.

 

Projetar poder

«A figura da liderança russa tem sido sempre de alguém carismático, que projeta poder», explica Sénica, que vê aí um dos motivos da popularidade do Presidente. Putin, então ex-agente do KGB e diretor do seu sucessor, o FSB, aparece no panorama político em 1999, com a promessa de «uma nova Rússia, numa tentativa de estabilização interna e de reconhecimento internacional», recorda a investigadora.

Eram os tempos de rescaldo da queda da União Soviética, cujas empresas estatais foram, em boa parte, dividas entre uma nova elite – os famosos oligarcas. Putin reinvindicou de novo o papel da Rússia como potência mundial, entrando várias vezes em confronto com países ocidentais: talvez o pico tenha sido a anexação russa da Crimeia, em 2014.

Ao mesmo tempo, depois do ateísmo militante soviético, Putin rapidamente se afirmou como defensor dos valores cristãos ortodoxos. «Cada vez mais há uma proximidade maior entre os setores religiosos e o aparelho político», nota Sénica. Algo que terá tido um papel tanto na crescente repressão das minorias sexuais na Rússia, como na popularidade do Presidente russo – que cada vez mais parece eterno.