A colonização do público pela lógica privada?

«O tempo chega sempre. Mas há casos em que não chega a tempo». Camilo Castelo Branco

O cinema, a ficção científica, têm-nos colocado muitas vezes nos últimos anos provocadoramente perante uma espécie de guerra entre os humanos e as máquinas. Filmes e séries não têm faltado para essa abordagem. 

É uma guerra que cada vez mais se tem transferido do audiovisual para a vida real de todos nós. Que, entre o entusiasmo e o medo, nos têm feito acompanhar com atenção e curiosidade o crescente aumento da influência da tecnologia em quase tudo o que tem a ver com as nossas vidas. 

Sendo quase um suicídio, perante a sociedade contemporânea, chamarmos a atenção não só para o excesso de influência mas também para as ‘rédeas soltas’ que a tecnologia assume em todos os domínios das sociedades contemporâneas. Hoje, quem pede mais controlo, mais fiscalização e regulação para tudo o que tem que ver com as máquinas, com os computadores, com todo o tipo de instrumentos tecnológicos e informáticos, é olhado de soslaio. Ou seja, é um conservador que advoga um tempo ultrapassado e que tem medo do progresso. 

É que esta relação entre os humanos, que criaram e inventaram as máquinas, e as próprias ‘criaturas’, tem muito que se lhe diga. É uma relação que, para ser sadia e positiva para os humanos, não deve deixar de ter presente o seguinte: sendo os computadores e as máquinas invenções humanas extraordinárias, não podem nunca ser colocadas ao mesmo nível dos seus inventores e criadores.

A inteligência artificial é um bom exemplo do que não deverá acontecer. Tem de ser devidamente enquadrada e regulada, por forma a não ser mais um foco de problemas.

Não são poucos os especialistas nestas matérias que têm perdido a vergonha, vindo a dizer que só eles estão habilitados a falar e refletir sobre estas temáticas. Que, segundo consideram, irão resolver muitos problemas ao mundo e à humanidade, e em particular às economias dos vários países.

Ora, há muito tempo que os poderes públicos nacionais e estaduais, e os poderes públicos supra estaduais, já deveriam ter aprendido com o que aconteceu e ainda acontece com a rédea solta do Google, Facebook e parte da internet. Desde as fake news a outros malefícios, sobram os maus exemplos do que são as máquinas e a tecnologia em excesso e à solta.

Se tivessem sido regulados e supervisionados a tempo, muitos dos problemas que existem não teriam ou visto a luz do dia ou persistido durante tanto tempo, sendo certo que não é despiciendo dizer-se que tudo isto não pode deixar de ser visto como mais um sinal dos tempos. Em que a ortodoxia dos números e a desvalorização das humanidades são uma constante.

O politicamente correto e a sua ‘narrativa’ (palavra cada vez mais gasta, por tão mal ser utilizada para tudo e para nada) têm-nos colocado perante a quase obrigação de aceitar (para não dizer engolir…) que só é bom cidadão quem não duvide de muitas destas coisas: da sua utilidade, da sua importância, do seu papel no futuro. 
É como uma espécie de obrigação de entregarmos as chaves de casa, do quarto e do carro a ‘estranhos’, de quem se diz serem gente mais barata e eficaz.

Pois é… É por estas e por outras que, mesmo para quem não é de esquerda, faz sentido que se receie a colonização do que é público pela lógica exclusivamente privada. É um dos perigos que teremos de enfrentar, ao fazermos de conta que não vemos nada disto a acontecer, de tão entusiasmados que estamos — em jeito de parolos que afinal o que querem é ir na onda da modernidade e ganhar de forma rápida o que deveria acontecer, sem tantos riscos, de forma mais demorada. 

Não é por acaso que o lóbi das grandes multinacionais associadas à informática e às novas tecnologias tem tanta foça e poder nos media. Não só pela inserção de publicidade mas também pelo condicionamento de apoios e patrocínios de vária ordem.

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