Chet Baker. O gosto de andar perdido à volta da última nota

Não faltam ao jazz lendas brutais e talentos sobrenaturais, mas ninguém como Chet foi tão leal na hora de cair dessas grandes alturas, ninguém tocou o desamparo e a fragilidade como ele, com o seu trompete seguro, a voz sumida, e aquela beleza que deu à morte toda a margem para os maiores estragos.

Há os trabalhadores da canção, esses que cumprem um horário, não se desculpam com os humores da musa, picam o ponto com chuva ou sol, nunca lhe faltam; depois há os seus aristocratas. Ainda que a sociedade não os honre, e mesmo que os tome por párias, quem tem ouvido irá sempre reconhecer-lhes o sangue azul. Muitos vivem à toa, esforçando-se por exorcizar os seus demónios sem, com isso, espantar os anjos. A certas épocas pode faltar imaginação, até a decência do bom gosto, mas ainda que ao ouvido faltasse a memória – e ao ouvido o que não falta é memória –, o tempo acaba por resgatar as mais nobres linhagens no que respeita à música. Chet Baker ainda hoje não é adulado pelos fanáticos do jazz. A sua aristocracia era a de um talento quase frio. Sem aquela tirania deslumbrante do seu rival, Miles Davis, este rapaz do Oklahoma teve de persistir, mostrar-se obstinado. Havia nele, de resto, outras particularidades: era favorecido pelas mulheres e pela câmara, tinha esse tipo de beleza que distrai, e pela qual quase se é obrigado a pedir desculpa… Perdeu-se a conta das vezes que foi comparado a James Dean. E havia ainda um magnetismo difícil de explicar, aquela harmonia delirante de um sonâmbulo que calha dar com o menos ameaçador dos instrumentos – «o trompete tombado para os lábios como se fosse uma garrafa de brandy, como se em vez de tocar estivesse a dar grandes goles, aliás, nem sequer a dar grandes goles mas a bebericar». Geoff Dyer chamou-o para os inesquecíveis retratos de Mas É Bonito, o sensacional tributo literário que prestou  ao jazz —livro com edição portuguesa da Quetzal (2014). E lembra que a indústria discográfica estava ansiosa por promover uma estrela branca num firmamento maioritariamente negro. «Chet era o sonho tornado realidade», refere. «Tinha aquele olhar confiante, aquela cena tipo cowboy, mas também tinha a postura de menina tímida a olhar para a câmara por cima do ombro, a esconder-se atrás de si mesmo».

Não estamos em cima de nenhuma data redonda. E se após a sua morte, em 1988, a sua lenda imitou a sua persistência e se tornou demasiado presente para haver necessidade de o lembrar, falamos de Chet porque a editora VS nos ofereceu um bom pretexto, publicando as suas ‘memórias perdidas’. Como Se Eu Tivesse Asas é um magro volume que, não fosse a enobrecedora arte gráfica que João Bicker coloca nestas edições, talvez só pudesse contar com a benévola afeição dos incondicionais de Chet. Trata-se de um livro preparado pela viúva, Carol Baker, que organizou um manuscrito com textos escritos em alturas diferentes, e que levantaram dúvidas em relação à sua autenticidade, até pelo facto de a caligrafia variar de forma extraordinária. O achado foi feito por uma revista norte-americana, a Spin, e estas memórias foram originalmente publicadas quase uma década após a morte do músico. Carol não demorou a reconhecer que as notas eram do marido, quase pelo cheiro que, tal como deixava na roupa, deixou na prosa.

«A decisão de publicar estas memórias foi tomada a pensar na vibração e no imediatismo que o Chet possuía – qualidades maravilhosas que eu não queria que se perdessem através de referências respeitáveis nas páginas poeirentas da história do jazz, ou fossem esquecidas na inadequação de biografias exíguas de apenas algumas linhas», diz-nos ela numa breve nota introdutória. Ainda acrescenta: «Não são suficientes reportagens diluídas e relatos em segunda mão para captar aquilo que Chet era – e talvez este livro também não o consiga fazer. Mas anda lá perto. Estas são as palavras dele, as suas memórias, a sua perspectiva».

Como se percebe por estas palavras da viúva, em 1997 não era ainda certo que, do rastro funesto que o trompetista e vocalista deixou à sua passagem, pudessem ser colhidas as sementes para as proporções deste mito com que hoje convivemos. O mérito desta obra claramente não está no vigor literário: há um registo apressado, quase telegráfico, como se a memória fosse um elétrico que nos obrigasse a correr para o apanhar, seguindo depois à pendura. Capítulos curtos, o fôlego sustido, mas mais do que um atraganado esboço dessas coisas que lhe aconteceram e ficaram com ele, temos uma tentativa séria do músico em explicar a si mesmo como uma coisa levou à outra e tudo isso deu na embrulhada que nos parece à distância. É evidente que se aplicou em reconstituir a sua história tomando o corrimão de uma linha cronológica, e, assim, desliza da sua infância até à altura em que se tornou uma das figuras capitais da vibrante cena de jazz na Costa Oeste. 

Tendo nascido no seio de uma família pobre, a música começou por ser uma forma de agradar ao pai, de inspirar-lhe um pouco de orgulho, sendo ele um grande apreciador de Jack Teagarden. Assim, o primeiro instrumento que lá apareceu em casa foi o trombone, mas Chet era baixo até para a sua idade (13 anos), e não conseguia chegar às posições mais em baixo, além de que «o bocal era demasiado grande para os meus lábios». Por isso, o trombone desapareceu ao fim de umas semanas para ser substituído pelo trompete, e, a pouco e pouco, o desapontamento do pai foi diminuindo ao ver os progressos de Chet – «é que ele também gostava  de Bix [Beiderbecke], percebem?».

Aos 16 anos, Chet deixa o liceu e alista-se no exército, não demorando a integrar a sua banda, mas depois, como viria a tornar-se hábito, sempre que a disciplina aperta com ele, começa a fazer planos para dar de frosques, e mostra até um empenho sério para que corram com ele, seja passando por homossexual seja fingindo alguma espécie de distúrbio. Ainda estavam longe os dias de devoção quase monacal às drogas, mas começaram por aí os primeiros flirts, e recorda o desespero de toda aquela juventude de uniforme para sacudir da vida o seu estupor: «Como não havia álcool para beber, alguns tipos misturavam Aqua Velva e sumo de fruta. Toda a gente se embebedava e envolvia em rixas».

Para Chet, o jazz é essa direção que devora horizontes, aquele destino que só se pode divisar a «sul de nenhum norte». Ao lermos o seu próprio relato das coisas, torna-se claro que a tal teimosia com que parecia estar sempre virado para um mesmo lado era uma forma de lealdade à sua natureza. Afinal, não era como se lhe restassem alternativas. As mulheres e as drogas, essas sim eram compulsões, vícios irrecusáveis. Mas não se deleita em grandes descrições, os tão raros instantes de volúpia apenas acentuam a recusa de Baker em entregar-se a qualquer forma de sentimentalismo ou nostalgia. E assim, a sua persistência em narrar tudo a um mesmo nível, de forma quase apática, e com o humor ou qualquer outro efeito sempre agarrado pela coleira, tornam demasiado evidente a analogia com o seu modo de cantar, que arrepia tanto mais por não se permitir qualquer afetação. É por isto que a forma como, por muito tempo, foi deliberadamente desdenhado pelos inveterados amantes do jazz hoje nos surpreende. Como refere o crítico de música Phil Johnson, no seu auge Baker era um trompetista absolutamente irrepreensível, e se apreciava a névoa narcótica e tinha dos melhores momentos da sua vida a impressão de que tudo fora como um sonho, não era por qualquer deficiência técnica que se recusava a esticar-se todo para colher as notas nos ramos mais altos da escala, ou exibir-se em doidas correrias, para dar a sensação de que o objetivo é ultrapassar a própria barreira do som. Ele mesmo dá conta deste seu desconsolo com o público de jazz. «Tenho a impressão de que há apenas três coisas que impressionam a maior parte das pessoas: quão depressa conseguimos tocar, quão agudo conseguimos tocar e quão alto conseguimos tocar. Acho isto um pouco irritante, mas com a experiência que tenho hoje compreendo que é provável que nem dois por cento do público seja verdadeiramente capaz de ouvir. Quando digo ouvir, refiro-me a acompanhar as ideias do trompetista e ser capaz de entender essas ideias em relação às mudanças, quando estas são completamente modernas».

Tal como Chet aprendeu a não abusar do trompete, também da caneta, do caderno onde regista voos e despenhamentos, nunca abusa, limita-se a registar o essencial, a deitar aquele contorno mínimo, como se tivesse pressa mais do que asas. As palavras são como alfinetes, prendem qualquer coisa, mas não engaiolam, não preservam a vácuo. São batidas a uma máquina que pensa genericamente o tempo, ritmam-no, para que depois a melodia lhe seja derramada entre as fendas. Às vezes, parece que pretende passar ao lado do que realmente importa,  deixa as provas a precisar de revisão, num avanço sem recuo. Tudo é escrito numa espécie de tracejado a partir do qual o relevo depende do leitor, do seu embalo e da consciência que já traz, da capacidade de colorir dentro e fora dos contornos, da capacidade de expandir certos detalhes com uma lupa, estabelecer relações. É, em certa medida, um livro esfacelado, um resumo da irrequieta vida, uma colagem biográfica onde falta precisamente o sopro. Falta o ritmo das ruas, dos clubes, o empolgamento ou a intriga orgiástica das jams. Mesmo os músicos apenas comparecem pelo nome, algum atributo mais óbvio, mas raramente lhes é dado grande espaço. Não é um testemunho, é uma confissão de um crime, sem remorsos; uma aventura que se desembaraçou de toda a emoção. Nada que não se soubesse já, apenas um acenar de cabeça aos factos da sua própria existência, como se lhe repetissem a sua história, esperando que ele preenchesse as zonas mais turvas ou as lacunas com revelações e Chet se limitasse a sorrir, e a confirmar que sim, é tudo. Fiquem lá com o vosso relatório policial, e nada mais que isso. Um crime perfeito não se explica.

E mesmo no que toca aos incontáveis engates, apenas nos vai dizendo que sim, que houve esta e depois aquela, «uma longa lista de senhoras agradáveis». E assim, como se vê, este é um texto ausente, desesperadamente omisso, e não deixa, no entanto, de nos revelar algo da verdade deste homem, e daquilo que fez dele um tão cativante trompetista. Como nos diz Geoff Dyer: «Chet não punha nada de si na sua música e era isso que dava à sua forma de tocar uma estranha paixão. A música que ele tocava sentia-se abandonada por ele. Tocava as baladas antigas e os standards com uma longa série de carícias que não levavam a nada, que desapareciam em menos de nada. (…) Sempre que tocava uma nota, dizia-lhe adeus. Às vezes nem se despedia».

Esta é uma vida que, de uma série de acasos, foi fazendo o seu destino, sem se importar demasiado com a forma como seria lembrado, entrega-se-lhe sem demasiada convicção, como um fatalista mas da raça mais desapegada, sem se dar importância, sem se comover com a sua tragédia, deixando isso para os admiradores mais tolos – esses que adoram compadecer-se, raspar a emoção do fundo de um poço onde não foi derramada uma única lágrima. Ao invés de ser um predestinado, Chet é um génio do abandono, alguém que prende o seu som um pouco acima do desmazelo de tudo o mais. Desde que a música pudesse ser de verdade, tudo o resto poderia ficar entregue ao seu desconcerto. E o facto de não escrever as letras para as suas canções e de preferir cantar e tocar os standards que ao longo de quase um século têm continuado a nutrir e elevar esta forma suprema de arte hoje dada como morta, isto só leva a que o seu encanto se enraíze cada vez mais fundo nessas memórias que são recordadas como as grandes performances intemporais do jazz.
Neste livro, só nos é dado um vislumbre dos últimos trinta anos da vida de Baker, esses que passou quase inteiramente na Europa, em Itália sobretudo, onde foi adotado com especial carinho, aparecendo em filmes, sendo celebrado como uma estrela. As drogas montavam-lhe sempre novas peripécias, como um relógio que cortava os segundos, os minutos, aceleravam-lhe os ritmos, e, assim, mesmo a fama não afastou dele as pequenas pragas com que o inferno vem reclamando os seus às prestações. Chet mostra a sua incomodidade, as chatices que tudo isso lhe dava, mas nunca se alarga demasiado. Lembra uma espécie de anjo vicioso, indigno das melhores coisas que podiam ter-lhe acontecido, e carrega o fardo de tudo isso – como o reverso do seu talento, a sua maldição. Assim, vemo-lo ser corrido a pontapé dos quartos de hotel, perseguido por agentes da polícia que sabiam que ao prendê-lo iriam figurar, mesmo que num papel secundário, no pequeno escândalo com que os jornais tapam o seu vazio. A este respeito, Enrique Vila-Matas, que há muito se ligou a Chet num culto insuperável, diz que ele foi um desses grandes heróis urbanos, esses artistas que vivem imersos no caos, e de lá emergem como para respirar o ar mais puro, acima de todas as cabeças, esses «seres admiráveis que sabem que é preciso arriscar a vida a cada momento porque senão esta carece de sentido». Para lá destas formas de devoção que desfazem os homens para alimentar os mitos, segue-se uma bela anotação do romancista espanhol, dizendo-nos que «a vida é como um bom poema: corre sempre o risco de carecer de sentido, mas nada seria sem esse risco».

Podíamos lamentar o vício, tudo o que a heroína roubou a Chet, a começar pela beleza, deixando-lhe aquele rosto que «tinha o aspeto de água a escorrer para o ralo», os ombros encolhidos, braços com nódoas negras e veias destroçadas. Mas, como nos diz também Geoff Dyer, a droga não lhe pôs nenhuma máscara, antes revelou «um rosto cujos traços pareciam ser controlados por uma gravidade interior que arrastava tudo para dentro». De resto, o vício de Baker, tendo em conta a vida que escolhera, era quase um requisito profissional. Muitos dos músicos de jazz que surgiram na década de 1950 partilhavam a dependência da heroína que funcionava como um substituto do pacto faustiano com o diabo. Chegava a ser encarado como um rito de passagem ou um distintivo que se leva no sangue. E não é que se julgassem imortais ou imunes aos seus efeitos destrutivos, era como se esse convite à morte tivesse de estar sempre sobre a mesa. E Dyer frisa que a genialidade de Chet se consegue ouvir no modo como «todas as notas que tocava eram uma premonição da última, como se improvisar fosse uma forma de clarividência, como se ele tocasse elegias para o futuro». Ninguém se atreveu alguma vez a dizer que foi ao engano, ou que foi por falta de avisos. No céu ainda não sabem o que é isso do jazz.

Quanto aos avisos que Chet recebeu, além de ter sido um traficante que, em resultado de um diferendo de opiniões, lhe partiu os dentes da frente (o que, para um trompetista, é sempre chato), um dos mais audíveis foi a morte do seu pianista Dick Twardzik, isto na primeira visita de Baker à Europa, em 1955. Certo dia em que a banda se reuniu para gravar um álbum, «todos apareceram excepto o Dick». «Esperámos uma hora, e depois o Peter ofereceu-se para ir ao hotel ver o que se passava. Cerca de uma hora depois, entrou no estúdio completamente histérico, gritando que o Dick estava morto. Contou-nos que ele e o gerente do hotel tinham arrombado a porta do quarto e encontrado o Dick azul, com a agulha ainda espetada no braço». Uma vez mais, Chet regista a ocorrência, adianta que «a morte do Dick determinou o fim de muitas coisas», e depois segue em frente.

Esse colecionador nervoso de influências que é Vila-Matas também nos ajuda por ter-se dado ao trabalho de investigar a estranha morte de Chet, em 1988, contando-nos que o músico «caiu no vácuo, num hotel de Amesterdão, cuja fachada escalava no momento em que perdeu o equilíbrio. Estava a escalá-la porque esquecera o seu trompete no terceiro andar e queria recuperá-lo, mas sem passar pela recepção, porque acabavam de o expulsar do hotel». Dos anos que levou juntando tudo para oficializar a lenda de Chet, Vila-Matas fornece-nos ainda uma preciosa citação de Michel Graillier, o pianista que o acompanhou nos últimos dias: «Chet tinha o sentido do silêncio, que é a matéria-prima do músico. Aproximava-se do microfone, deixava passar quatro, oito compassos e desde o preciso momento em que atacava a nota, esta alcançava toda a sua plenitude (…). Conseguia uma audição profunda do público porque dava toda a significação musical ao silêncio antes de começar o seu solo».

O mais incrível, como nos diz Phil Johnson, é que «apesar das circunstâncias, quase tudo o que gravou merece ser ouvido». E refira-se que nenhum músico de jazz do mesmo período gravou mais do que Chet. «Por mais manhosa que seja a banda, por mais tosco que seja o material, e mesmo que o solista esteja completamente pedrado, o talento de Baker nunca o largou, ficou com ele até ao fim.» E o fim, no caso de Chet, não foi um definhar ao longo de semanas ou meses, mas anos. «A velha história de quando morrer a tua vida inteira te passa à frente dos olhos. A vida dele arrastava-se à sua frente desde que ele tinha memória, pelo menos há vinte anos, talvez estivesse a morrer desde então, talvez os últimos vinte anos tivessem sido o longo instante da sua morte», escreve Geoff Dyer. Chet viu a morte e deu-a a ver onde quer que fosse. Vestiu o seu cadáver, e das tantas gravações de concertos que, postumamente, vieram a ser promovidos como sendo o último, Phil Johnson conta que há um com a Danish Radio Big Band, em que canta e toca duas versões de ‘My Funny Valentine’ e que são ambas «extremamente comoventes mas também tecnicamente soberbas». Uma outra versão surge no documentário Let’s Get Lost, de Bruce Weber, lançado no ano em que Chet morreu. E nesta, se às vezes lhe parecem faltar as forças até para se ter de pé, a sua vulnerabilidade ainda cabe inteira naquele modo de cantar quase murmurado, os andamentos prolongam-se languidamente e às tantas a canção já não é só isso, todo o sentido que falta ao mundo e à vida ressoa no nosso próprio vazio. Por um momento, também nós estamos cheios desse sentimento de tudo o que nos falta, e as notas sucedem-se arrastando-nos de volta ao nada.