Nos 70 anos da morte de Albert Camus

Camus pagou pela liberdade de pensamento, pela liberdade do «homem revoltado». Por não ter traído a consciência.

Para a Filipa,

Num número recente da revista Marianne, Natacha Polony lembrava os 70 anos da morte de Albert Camus, num brutal acidente de viação em que faleceu também o amigo Michel Gallimard, sobrinho do grande editor Gaston Gallimard.

«Com Camus desaparecia um intelectual, escritor e jornalista cuja visão sobre a atualidade trágica do seu tempo fora capaz de evitar as loucuras e as errâncias duma época dominada por utopias devastadoras, pela destruição sistemática do adversário político» – escrevia Polony.

Camus pagou pela liberdade de pensamento, pela liberdade do «homem revoltado». Por não ter traído a consciência.

O império soviético oferecera então aos que de má-fé serviram a sua mentira medonha a oportunidade para saciarem o apetite de poder, impondo – na França, e por ela na Europa e a nós – a tirania do pensamento totalitário, de que ainda sofremos os estertores. 

Depois dos anos 1990, com a queda do império soviético, Camus começou a recuperar o estatuto que os zeladores de Sartre lhe haviam roubado. Mais ainda: tornou-se hoje referência desejada para um espetro intelectual de grande extensão, reivindicado ora como liberal, ora como social-democrata, de acordo com os interesses políticos e as conveniências ideológicas.

E, todavia, a grande singularidade de Albert Camus está na impossibilidade de poder ser usado por qualquer cruzada política. 

A procura da verdade que o obcecava não deve, no entanto, como ele próprio escreveu, «impedir de fazer escolhas», de assumir posições. Num texto de reflexão sobre o «jornalismo crítico», publicado no jornal Combat, lamenta que se queira «informar depressa, em vez de informar bem» e defende o «comentário crítico político e moral sobre a atualidade» como uma das dimensões essenciais dum jornalismo que, para ele, deveria ser um exercício de humildade e de dúvida.

A enorme força dos textos de Camus não reside nas suas supostas escolhas políticas, que não é possível saber onde o teriam conduzido. O que Sartre lhe odiava – e valeu a Camus estigmas e insultos – foi a desconfiança relativamente a todos os dogmas e à ilusão fácil dos radicalismos, a repugnância pela ambição do poder daqueles que juravam combater todos os poderes, a recusa obstinada do pensamento totalitário e totalizante. 

Em vez de dissertar sobre Camus – e volto ao texto de Natacha Polony – o que devemos fazer é tentar assumir o papel que assumiu, agir como ele, «impedir que o mundo se desmorone». É esse o grande desafio que se impõe aos intelectuais e – acrescento eu – aos comentadores e jornalistas.

Através do amor proclamado pelo sol mediterrânico, pelo brilho do mar, como também Portugal tem a bênção de ter, Camus recusa e teme as verdades absolutas, preferindo as «verdades singelas», os «bens simples mas essenciais». 

Porque entre a satisfação daqueles que conseguem sempre justificar  a injustiça e as certezas  morais por aquilo  que  são puras abstrações, é o amor dos seres humanos, nas suas fraquezas e humanas aspirações, que  nos pode evitar ficar um dia do lado dos opressores.

Ao preço do crime e sofrimento dos ‘amanhãs que cantam’, cabe-nos preferir a felicidade real, o bem concreto, aqui e agora.