Um país de doentes

Diz-se que a saúde hoje é muito mais democratizada e todos têm acesso a ela. Só que a democratização teve um preço: a massificação, a desumanização, os médicos transformados em burocratas.

Abro a televisão e ouço Rui Rio a vociferar contra o «péssimo estado em que está o Serviço Nacional de Saúde». Mudo de canal e vejo Jerónimo de Sousa a pedir mais dinheiro para a saúde. E a seguir aparece Catarina Martins a reclamar para si os louros de o Orçamento da saúde contemplar mais umas centenas de milhões de euros. E não há declaração política que não fale do SNS, do estado em que estão os hospitais, do dinheiro que falta no sistema de saúde, etc. 
Dá ideia que somos um país de doentes. Que pouco há para além das doenças.
E isto não é agora – é de há muito tempo.

Aobsessão com a saúde faz-me alguma impressão. Parece que o dinheiro para a saúde nunca chega. Por maior que seja o orçamento, é sempre pequeno. 
E os cidadãos interiorizaram esta ideia. Ai do político que diga que não vai dar mais dinheiro para a saúde ou que é preciso poupar na saúde! 
As pessoas não aceitam, porque com tanto falatório acabam por viver aterrorizadas pelas doenças que têm… ou poderão ter. 
As oito horas de espera nos hospitais, os engarrafamentos nos centros de saúde, resultam em boa parte desse terror. Há gente que, mal dá um espirro, corre para o hospital. E nos centros de saúde os médicos andam a toque de caixa, tal a afluência de ‘clientes’.

Ora, esta obsessão é que é doentia. Em vez de se exigir sempre mais dinheiro para a saúde, de se construírem cada vez mais hospitais, de se contratarem cada vez mais médicos e enfermeiros, devia fazer-se um ponto de ordem nesta história. 

Devia dizer-se às pessoas que não é conveniente irem a correr para o hospital por tudo e por nada. Devia explicar-se que os hospitais (e os centros de saúde) são centros de contágio. Que as salas de espera, onde se acumula gente com muitas patologias, são os locais ideais para a transmissão de doenças. 
E, a outro nível, as infeções hospitalares – que resultam da concentração brutal de doentes num mesmo edifício – constituem hoje uma importante causa de morte.

E além do aspeto físico, há o aspeto psicológico. Um doente, quando entra no hospital, fica fragilizado. Um médico muito experiente afirmava um dia que uma percentagem grande de gente que morre nos hospitais ‘morre de medo’. Todo o ambiente que se vive num hospital é atemorizante. O doente sente-se nas mãos de outros, sente-se sem poder sobre si próprio, e psicologicamente quebra, tornando-se também fisicamente mais vulnerável.

Dir-se-á que, sendo tudo isto verdade, a saúde hoje é muito mais democratizada e todos têm acesso a ela. Só que a democratização teve um preço: a massificação, a desumanização, os médicos transformados em burocratas a preencher fichas no computador sem tempo para observarem os doentes e, às vezes, sem tempo para olharem sequer para eles. E os corredores dos hospitais cheios, com doentes instalados em condições sub-humanas.

Antigamente não era assim. Em geral porque as pessoas só iam para o hospital em última instância, quando estavam de facto mal. Mas também porque havia os médicos que iam a casa dos doentes – o que era muito mais cómodo e humano do que obrigá-los a sair de casa e meterem-se numa sala cheia de doentes. 

Dir-se-á que só os ricos tinham possibilidade de ‘chamar o médico a casa’. Não é verdade. Nunca fui rico, e quer eu quer os meus filhos fomos assistidos muitas vezes em casa. E assim acontecia com a generalidade das pessoas da classe média.

Quanto aos ‘pobres’, havia muitos médicos que, por amor à causa, não lhes cobravam dinheiro. O meu avô materno era um deles. Um João Semana de bom coração. Quando morreu, o quintal de sua casa encheu-se de ciganos que ele assistia de graça. Pagava quem podia, quem não podia não pagava. E ainda há quem entenda assim a medicina. O nosso colaborador Luís Paulino Pereira já terá ido a casa de muita gente que não podia pagar – e não pagou.

No setor da saúde, muita coisa terá de mudar. Em vez de se estar sempre a pedir mais dinheiro, há que fazer ao contrário: contrariar a ‘psicose da doença’, que está a tornar cada vez mais cidadãos hipocondríacos, gente que nem aproveita a vida porque vive dominada pelo medo das doenças. Gente que sonha com doenças ao virar da esquina.
Ora, a morte chegará inexoravelmente um dia – mas, se a pessoa viver a pensar nela, o tempo de vida torna-se inútil, transforma-se num tormento. O medo da morte, o pavor da doença, estragará a vida. A vida deixa de ser vida para ser um jogo de escondidas com a morte.

O Ministério chama-se da Saúde mas é afinal o Ministério da Doença. É o ministério dos doentes, dos hospitais, das salas de espera a abarrotar. Ora, o espírito deverá ser outro. Deverá ser mais virado para falar de saúde, e pensar mais na saúde e menos na doença. 

E as pessoas deverão fazer o mesmo. Enquanto estão vivas, devem usufruir da vida – e não torná-la um calvário a pensar na morte que um dia virá. Os mortos não falam. Mas, se o fizessem, dariam um conselho aos que por cá andam: «Aproveitem a vida, porque terão muito tempo para estar mortos».