Brexit. O fim de uma relação que nunca foi fácil

As reticências britânicas quanto ao bloco europeu têm uma longa história. No dia da saída, o SOL falou com ministros portugueses que acompanharam esse percurso.

Brexit. O fim de uma relação que nunca foi fácil

Às 23 horas de ontem – meia-noite em Bruxelas – o Reino Unido pôs fim a 47 anos de pertença ao bloco europeu. Foram anos de uma discussão que, no rescaldo do referendo de 2016,  mostrou um país dividido ao meio, entre os 51,9% que votaram ‘sim’ ao Brexit e os 48,1% que votaram ‘não’. Nem então a saída da União Europeia foi um dado adquirido. No Parlamento britânico, uns puxaram por uma saída negociada, alguns por um Brexit ‘duro’ e outros por um segundo referendo. O assunto só foi decidido pela estrondosa vitória dos conservadores, liderados por Boris Johnson, nas eleições de dezembro. Contudo, esta discussão não começou em 2016. Nem sequer foi o primeiro referendo à participação do Reino Unido no bloco europeu: o primeiro foi logo em 1975, dois anos após a entrada britânica na Comunidade Económica Europeia (CEE), embrião da UE. Na altura, os britânicos decidiram pela permanência.

Entre os britânicos «sempre esteve presente uma grande nostalgia do império, sobretudo entre os que não aceitaram o seu fim», considera João de Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros português entre 1987, um ano depois da adesão de Portugal à CEE, e 1992. «Uma vez alguém sugeriu que no Conselho de Segurança [da ONU] em vez do Reino Unido e França estivesse a UE. Foi quase um anátema, lembro-me que os britânicos iam tendo um ataque de fúria», conta. «Diluírem-se numa coisa com a UE sempre lhes fez muita confusão».

Enquanto Deus Pinheiro era ministro, o Executivo britânico era encabeçado pela chamada ‘Dama de Ferro’, Margaret Thachter. Em 1975 a líder conservadora defendeu a pertença à CEE – mas nunca deixou de se mostrar relutante quanto ao assunto. Aliás, em 1990 acabou a demitir-se, face à pressão dos europeístas do seu partido, que queriam maior integração europeia.

Thatcher, um dos grandes expoentes do neoliberalismo, ao mesmo tempo mantinha «uma posição muito chauvinista, muito nacionalista», recorda o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português. «Ela queria um mercado livre na Europa e mais nada». Ou seja, «no que toca às regras, queria que cada país tivesse as suas», com  «livre circulação de capitais e mercadorias», mas nunca de pessoas, explica Deus Pinheiro. É que a ‘Dama de Ferro’ «tinha sempre medo de ser invadida por europeus», conta.

Desde então, esta posição foi ecoada pelos conservadores eurocéticos britânicos, que em 2016 encabeçaram a campanha pelo Brexit: Aliás, muitos deles, como o atual primeiro-ministro, Boris Johnson, sempre se afirmaram herdeiros políticos de Thatcher.

Já a ex-primeira-ministra britânica Theresa May – que se viu à frente das negociações do Brexit após a derrota do seu antecessor, David Cameron, em 2016 – aproxima-se mais da tradição  de Geoffrey Howe e de John Major, ambos ministros dos Negócios Estrangeiros de Thatcher. Nesse posto, apesar de defenderem um ritmo mais lento para a integração europeia, mostraram-se «europeístas de primeira», nas palavras do seu homólogo português – foi a demissão de Howe que acelerou a substituição da primeira-ministra britânica por Major.       

    

‘Bárbaros de primeira’

Quando Deus Pinheiro assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros, eram os primeiros anos de Portugal na CEE, após a entrada, juntamente com Espanha, em 1986. «Nas reuniões, nós ficávamos ao lado dos ingleses», recorda o antigo ministro. A fluência em inglês da comitiva portuguesa facilitava a comunicação, além de haver interesses em comum. «Eles estavam a negociar Hong Kong, nós estávamos a negociar Macau», recorda, salientando também a vertente atlanticista de ambos os países, defensores da relação com os Estados Unidos.

Apesar da proximidade, mantinha-se sempre uma certa distância. Deus Pinheiro, que estudou em Inglaterra e ainda hoje se afirma anglófilo, costumava brincar com o assunto: «Todos os que não fossem britânicos eram considerados bárbaros. Mas como nós [a comitiva portuguesa] falávamos bem inglês achavam que éramos bárbaros de primeira» – havia depois os considerados «bárbaros de segunda ou de terceira», conta o antigo ministro. Nos anos 90, popularizaram-se os acrónimos PIGS (porcos, em português), ou por vezes GIPSI (pronunciada da mesma forma que a palavra inglesa para cigano) como referência aos países do sul, com economias mais vulneráveis: Portugal, Itália, Grécia e Espanha.

«Quando Portugal aderiu à CEE – e na altura ainda não havia o mercado interno – houve um período de sete anos antes em que os portugueses puderam circular livremente», lembra António Martins da Cruz. Na altura era assessor diplomático do ministério de Deus Pinheiro, e viria a ser ele próprio ministro dos Negócios Estrangeiros entre 2002 e 2003. Parte da resistência ao livre movimento de portugueses partia de Londres, «mas por acaso o país mais difícil foi o Luxemburgo», menciona.

Após a CEE ter transitado para UE, com o tratado de Maastricht, em 1992, os receios britânicos quanto à imigração focaram-se noutras nacionalidades. Preparava-se o alargamento ao centro e ao leste europeu, após a queda da União Soviética, o maior dos quais em 2004. Durante o tempo em que Martins da Cruz foi teve a tutela dos Negócios Estrangeiros, «o argumento britânico era: ‘nós não queremos ser invadidos por canalizadores polacos». Algo que voltaria a ser muito ouvido no referendo do Brexit.

De notar que as negociações deste alargamento foram durante o Governo trabalhista de Tony Blair, que em 2001 declarou que o Reino Unido deveria ser «um parceiro convicto, não irresoluto, da Europa». Tentava que o seu país aceitasse o euro, mas nem o próprio partido foi capaz de convencer. Mesmo assim, nas reuniões em Bruxelas, «não traziam para a praça pública as divisões internas. Na posição britânica não havia reflexo do debate que existia» internamente, garante o antigo ministro português.

 

Fake news

Em 1988, Boris Johnson foi enviado pelo Daily Telegraph a Bruxelas como correspondente, tornando-se conhecido pelas suas notícias críticas da UE. Muitas foram desmentidas, mas isso não o impediu de se tornar o jornalista favorito de Thatcher, segundo a biografia Boris: The Rise of Boris Johnson, de Andrew Gimson.

Enquanto dirigente europeu, Pinheiro nunca se cruzou com Johnson – «graças a Deus», diz –, mas recorda algumas notícias atribuídas ao futuro primeiro-ministro. Como a suposta tentativa de Bruxelas para uniformizar o tamanho dos preservativos europeus. «Qualquer trabalho de standardização na área dos preservativos concentra-se na qualidade e não no tamanho», foi obrigada a Comissão Europeia a desmentir, num comunicado de 1994, altura em que Deus Pinheiro fazia parte do órgão. «Deixava-nos completamente estarrecidos como é que um jornal publicava uma coisa daquelas», lembra. «Já nessa altura, aquilo a que chamariam fake news começava a circular». Johnson voltaria a ser acusado de disseminar informações falsas, durante a campanha pelo ‘sim’ ao Brexit, que resultou no adeus britânico de ontem.

 

E agora?

Agora, as opiniões dividem-se quanto ao futuro da UE e do Reino Unido: ainda terão de negociar quase toda a sua relação, da segurança à economia. Para muitos, o Brexit, augura maiores divisões, numa UE cada vez mais polarizada entre o centro e a periferia. «Representa um desequilíbrio estratégico na Europa», lamenta Martins da Cruz. «Sai o único país que moderava o eixo Paris-Berlim», explica, notando que apenas fica um país com veto no Conselho de Segurança e armas nucleares: França.

Mas pode ser que nem tudo corra mal, considera Deus Pinheiro: «Contrariamente a uma grande maioria, penso que é uma grande janela de oportunidade para a União Europeia, para dar um passo em frente no sentido do seu aprofundamento». O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros português lembra as negociações para o tratado de Maastricht: «Não se foi mais longe, em muitas políticas e decisões, porque era preciso unanimidade e os britânicos opunham-se».