Hurling. Rachadores de cabeças

Os invasores ingleses consideraram o jogo tão violento que proibiram a sua prática aos colonos. Hoje é Património Imaterial da humanidade.

Certa vez, em Leeds, entrei num pub, pedi uma cerveja Guinness e ouvi uma resposta muito pouco agradável por parte do rubicundo inglês que estava ao balcão: «Go to the fuckin’ irish bar next door!». Fui. Sujeitando-me aos ditames dessa antiquíssima aversão que vem do tempo em que os anglo-normandos invadiram a ilha que Ptolomeu chamava de Iouerní, muito antes de haver católicos e, portanto, muito, muito antes de se abrirem as hostilidades entre estes e os anglicanos. 

Iouerní, nome de uma das tribos celtas que habitavam o local, deu Hibernia (Terra doInverno) para os latinos que trataram de abastardar a expressão inicial de Ivernii, e depois Ériu e Eire, e as suas gentes tinham uma fama de violência capaz de assustar até os muito pouco aconselháveis conquistadores enviados por Henrique II, o primeiro Plantageneta no trono de Inglaterra, no ano de 1169. O tempo passou e os inesperadamente sensíveis ingleses alimentaram tanta aversão aos irlandeses que decidiram tomar medidas para evitar que os colonizadores se envolvessem nos, para eles, desprezíveis hábitos locais. Assim sendo, formalizaram em 1366 os Estatutos de Kilkenny, cidade que além de produzir uma excelente ‘ale’ também foi a sede do parlamento inglês na Irlanda. Uma das regras fundamentais desses estatutos proibia qualquer tipo de participação dos colonos em manifestações tradicionais da região, especificamente a prática do hurling, um desporto considerado de inusitada barbaridade. O facto de ser praticado há mais de dois mil anos não serviu de atenuante. Hoje é etiquetado pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade.

Brutos!

O grande poema épico da Irlanda, assim uma espécie de Ilíada celta, senão quisermos meter o nosso LuísVaz ao barulho, tem o título meio impronunciável de Táin Bó Cúailnge. Data doSéculo I e conta-nos o ataque da rainha Medb de Connacht e do seu marido, o rei Ailil, aoUlster com a intenção de roubarem Donn Cúailnge, o grande e fértil grande boi castanho de Cooley e de como foram escorraçados pelo adolescente semi-deus Cú Chulainn. Nomes sonantes que fariam acrisolar a alma de George R. R. Martin. Mas que só vêm aqui a propósito porque, por entre verso e prosa, o hurling surge descrito como um entretenimento de guerreiros. As regras mantiveram-se praticamente inalteradas até hoje. E não são tão simples quanto se possa pensar de uma atividade velha como a noite dos tempos. Os jogadores usam um taco de madeira grossa, semi-curvo na ponta (o hurl) para tentarem enfiar uma bola (sliotar, nos primórdios fabricada através do entrançar de pelos de carneiro) numa baliza, seja por cima da trave (um ponto) ou por baixo (3 pontos) onde se instala um keeper. A bola pode ser agarrada e transportada à mão, embora não mais do que quatro passos – para além disso tem de ser transportada na ponta do hurl –, pontapeada, atirada de uns para os outros com golpes de palma de mão ou com golpes de taco. Exercícios que exigem espaço, convenhamos. Por isso, nos dias que correm, o hurling – na Irlanda o campeonato é seguido com enorme e regionalista entusiasmo, representando as equipas as suas cidades, como no caso de Cork, Kilkenny, Tipperary, Wexford, Waterford, Clare, Limerick, Offaly, Dublin e Galway – disputa-se num relvado com 130 a 145 metros de comprimento e de 80 a 90 de largura, maior do que os de râguebi ou de futebol, com balizas em H nos topos, medindo estas 7 metros de largura por 6,5 de altura cruzada pela barra a 2,5. Quinze jogadores para cada lado batem-se durante 70 minutos com um intervalo aos 35. E batem-se é o termo certo. O vigor posto na utilização do hurl não horrorizava apenas os ingleses de antanho como serviu para, nos tempos modernos, rachar cabeças com um tal facilidade que o uso de capacetes ganhou amplas liberdades.

Os velhos habitantes daquilo a que os ingleses chamaram The Pale, ou English Pale (pale quer dizer cerca), a parte da Irlanda que controlavam, darão com certeza pulos na cova com esta modernice de proteger o crânio, até porque golpes no toutiço serviam, no seu tempo, para diminuir severamente os adversários, algo que fornecia à competição um sabor guerreiro amplamente apreciado. Os Estatutos de Kilkenny, no seu artigo 6.º, puseram fim ao divertimento: «São proibidas exibições públicas de disputas nas quais os homens, usando aquilo a que chamam horlings e uma bola, se magoam gravemente, provocando uns nos outros ferimentos que devem ser evitados». Acrescentava, em tom paternalista, sem força de lei, que era mais aconselhável dedicarem-se a melhorar as suas aptidões no arco e flecha, folguedo bem mais útil e sem dúvida menos grosseiro. O hurling é o segundo desporto mais popular da Irlanda a seguir ao futebol. O profissionalismo, no entanto, continua a ser posto em causa, tal é a devoção passadista de um povo que continua a ver nele não apenas um desporto como qualquer outro mas sim uma manifestação cultural que deve ser preservada a todo o custo. Para testemunhar o entusiasmo que provoca, nada como ir a Páirc an Chrócaigh, o Croke Park, em Dublin, na Jones Road, perto da estação de comboios de Drumcondra. Ainda recentemente um Limerick-Tipperary foi rodeado por cerca de 50 mil espetadores. E Jack Judge e Harry Williams sabiam-no bem: «It’s a long way to Tipperary/It’s a long way to go/It’s a long way to Tipperary/To the sweetest girl I know!».