Bong Joon-ho e a noite que escancarou portas

Depois de Roma, de Alfonso Cuarón, ter estado à beira de se tornar no ano passado a primeira película não falada em inglês a arrecadar o Óscar de Melhor Filme, eis que a Academia decide, ao fim de 92 anos, dar esse passo. E logo numa fita falada em coreano. A proeza foi dele.

Bong Joon-ho e a noite que escancarou portas

Bong Joon-ho, 50 anos, nasceu em Daegu, uma cidade no sudeste da Coreia do Sul habitada por mais de dois milhões de pessoas, e é um cineasta reconhecido no seu país desde o virar do milénio. Bong mantinha uma presença já regular noutros festivais, como o de Cannes – no qual o seu Parasitas arrecadou a Palma de Ouro, em setembro de 2019, fruto de uma votação unânime – mas que terá chegado como um quase desconhecido ao grosso dos espetadores que, no passado domingo, acompanharam a cerimónia dos Óscares. A noite foi dele e foi também do cinema sul coreano. Parasitas tornou-se ainda a primeira longa-metragem da história da Academia de Artes e Ciências de Hollywood a vencer em simultâneo os Óscares de Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Filme, aos quais juntou o prémio de Melhor Argumento e de Melhor Realizador. Isto num ano em que Bong Joon-ho concorria com pesos pesados da indústria: Martin Scorsese (O Irlandês foi o grande derrotado da noite, não tendo recebido nenhuma estatueta); Quentin Tarantino (Era Uma Vez Em… Hollywood), Todd Phillips (Joker) e Sam Mendes (1917). A imagem da cara dos cincos segundos cristalizada nos segundos antes de ser anunciado o vencedor ficará, certamente, para a história da Academia. Assim como o discurso do laureado, apontado nas típicas previsões pré cerimónia como um dos mais improváveis vencedores. «I love you», disse Bong a Quentin Tarantino, enquanto agradecia o prémio, referindo-se também no seu discurso de vitória a Scorsese. «Foi uma grande honra ter sido nomeado», disse já na sessão de imprensa pós-cerimónia, em que respondeu às perguntas dos jornalistas tanto em inglês como em coreano. Na mesa redonda, Bong recordou que o seu filme anterior – Ojka (2017) –, apesar de ter sido uma coprodução entre os Estados Unidos e a Coreia do Sul, e por isso falada em duas línguas, não tinha gerado o mesmo élan que Parasitas, falado unicamente em coreano. «Isso faz-me pensar que talvez quanto mais fundo eu for nas coisas que me rodeiam, maior alcance a história poderá ganhar e maior apelo terá para uma audiência internacional», referiu, sublinhando que nos tempos que correm e, especialmente agora que esta porta foi escancarada, as divisões entre as produções asiáticas, europeias ou norte-americanas fazem cada vez menos sentido. «Se perseguirmos a beleza do cinema e nos focarmos no charme individual que cada obra tem, iremos ultrapassar estas barreiras».

Depois, seguiu para a after party dos Óscares e fez as delícias dos perseguidores de memes nas redes sociais quando explicou como ia celebrar. «Vou beber até ao meio dia de amanhã». Whisky.

 

O argumento como base

Ao longo das suas 92 edições, apenas cerca de uma dezena de filmes estrangeiros foram nomeados pela Academia para o Óscar de Melhor Filme. Qual é, então, a magia de Parasitas que fez abrir a porta? Começa logo pelo facto de não se conseguir encaixar sem discussão em nenhum registo – é uma mescla de comédia com drama, entrecortada com toques noir. Foge, assim, do sistema, enquanto o critica. Sem entrar em detalhes, no cerne da história há uma vaca fria: o capitalismo e o esquema dedutivo que o vem acompanhando desde a sua criação – há sempre beneficiados e vítimas da própria estrutura. «Queria mostrar de maneira clara, mas emocionante, o abismo que existe entre quem tem dinheiro e quem não tem dinheiro», dizia o realizador ao Público em setembro de 2019, em Locarno. E fá-lo através de uma família em apuros financeiros e de uma outra que não os tem – uma dualidade explorada com mestria e que lhe valeu o consenso da crítica e dos espectadores (o filme ainda pode ser visto em algumas salas de cinema portuguesas).

Depois de ter recebido a Palma de Ouro em Cannes, Bong foi entrevistado por vários meios de comunicação. Fugindo um pouco ao roteiro, a CNN falou com o cineasta não sobre Parasitas, mas sobre uma das primeiras fitas que assinou e que nos revela, de certa forma, a sua aproximação à sétima arte. Entre 1986 e 1991, uma série de assassínios de mulheres em Seoul, conhecido pelos homicídios em série de Hwaseong, tornou-se num dos crimes por resolver mais mediáticos do país. O caso perdurou na memória do país e na de Bong, que levou a história dos assassínios para Memories of Murder (2003), a segunda longa-metragem da sua carreira. Bong passou os dois anos antes a estudar o caso e, cita a CNN, ficou «obcecado». Reuniu com familiares das vítimas, os polícias e os jornalistas que acompanharam o processo. «Mas o único tipo que eu não podia conhecer era o assassino», dizia o cineasta. «Queria mesmo ver a cara dele – até a tentei imaginar e desenhei-a para mim mesmo. E tinha uma lista de questões preparada para o caso de chocar com ele», contou. A identidade do assassino foi descoberta cerca de uma semana antes da cerimónia de Cannes. «Pude finalmente ver a sua cara publicada nos jornais […]. Foi muito complicado olhar para ela», recordou.

Isto tudo para nos dar conta da forma como se embrulha nos trabalhos a que se propõe e recordar que até chegar aqui – e ainda antes de assinar as suas primeiras películas – Bong era um argumentista treinado. Foi este, aliás, o seu primeiro trabalho na área do cinema, tendo-se tornado mais tarde diretor de fotografia. Duas linguagens importantes na hora de se sentar na cadeira da realização. Fê-lo pela primeira vez em Barking Dogs Never Bite (2000), seguiu-se o já citado Memories of Murder (2003), em 2006 internacionalizou-se com The Host — A Criatura; realizou Mãe (2009) e Snowpiercer (2013), sendo este último o seu primeiro filme em inglês, no qual abraça plenamente a ficção científica. Depois, veio Okja, em que a adorável super-porco criada em laboratório que dá nome ao filme e que é adotada por uma menina serve de reflexão para as alterações climáticas. Eis que chegamos a Parasitas e à altura em que a cadeira de realizador virou trono.

 

Uma nação movida a filmes

Ele é sem dúvida o homem do momento, mas Bong não está sozinho. O seu próprio sucesso é o reflexo de uma oleada indústria de cinema na Coreia do Sul que teve por detrás o próprio Governo do país e para o qual contribuíram quotas impostas para o cinema nacional e a aposta nos festivais. E as políticas culturais foram fundamentais na hora de, primeiro, cimentar internamente o culto do entretenimento, e depois exportá-lo. Para os mais desatentos, a vitória de Parasitas pode parecer vinda do nada, mas a força do cinema asiático e, principalmente, daquele ali fabricado vem sido desenhada nas duas últimas décadas. Hoje, a indústria sul-coreana é conhecida por um epíteto que deixa pouca margem de dúvidas: Hallyuwood. Uma termo informal que resulta de combinação entre ‘Hallyu’ – onda, em coreano – e o ‘wood’ importado diretamente de Los Angeles.

Miky Lee é um dos rostos da máquina e foi uma das pessoas a subir ao palco dos Óscares para celebrar a vitória. Conhecida como a «magnata da indústria sul-coreana de entretenimento», a neta do fundador da Samsung é a dona do CJ Group, uma empresa que herdou do seu avô e que, nos anos 90, a própria direcionou para o entretenimento. Em 1995, investiu 300 milhões de dólares para a criação da DreamWorks, ficando com mais de 10% da empresa e com os direitos de distribuição dos filmes na Ásia. A sua importância para a companhia foi tal que Jeffrey Katzenberg, o diretor executivo da Dreamworks, põe as coisas nestes termos: «Há duas pessoas indispensáveis na DreamWorks: Paul Allen [o primeiro investidor] e Miky Lee».

Os investimentos do grupo foram-se espraiando, mas há outro momento que deve ser agora recuperado: foi também com o CJ que, em 1998, Miky abriu a primeira cadeira de cinemas do país. Depois, apostaram forte no cinema nacional para garantirem que a lotação esgotada dos seus próprios cinemas. Cinco anos volvidos, o retorno dava sinais inequívocos: o primeiro filme nacional a cumprir de forma avassaladora as metas foi Oldboy (2003), de Park Chan-wook, o mesmo realizador que em 2016 assinou A Criada, outro filme extremamente bem recebido pela crítica. Ao longo dos anos, o CJ Group foi espalhando os seus tentáculos por todas as áreas de produção cultural – o toque de Midas chegou também ao estilo musical K-pop – e tem participações em quase todas as grandes empresas do mercado e em quase todas as fases de vida de um filme, apostando tanto na produção, licenciamento, distribuição e, como se viu, até exibição. «Ela é uma verdadeira cinéfila e conseguiu trazer essa paixão fanática para o mundo dos negócios», dizia Bong à Hollywood Reporter, lembrando que Miky foi a responsável pelo financiamento de alguns dos seus filmes – Parasitas, claro está, está incluído no leque. Uma aposta, escusado será dizer, de que não se arrepende.