Costa e o incómodo de Tancos

O comportamento de António Costa em todo este assunto foi tudo menos o que se esperava de uma pessoa inocente

Os meus leitores já sabem o que eu penso do roubo de Tancos: que as armas recuperadas não são as roubadas. E cada dia que passa, e mais se sabe sobre o assunto, mais se confirma esta ideia.

A meu ver, as coisas passaram-se de uma forma simples. Ao constatarem o grande impacto, a nível nacional e da NATO, do desaparecimento das armas, as autoridades militares, para porem um ponto final no caso, montaram uma farsa: foram buscar armas a outro paiol, puseram-nas num barracão, simularam um telefonema anónimo e anunciaram com pompa e circunstância que as armas tinham sido recuperadas. Ora, naquele momento, já deviam estar na Síria ou noutro cenário de guerra.

É muito estranho que Marcelo Rebelo de Sousa não tivesse conhecimento da operação, pois os serviços secretos militares reportam todos os acontecimentos ao Presidente da República com extrema minúcia; e António Costa a mesma coisa, pois o ministro da Defesa não daria luz verde à operação sem ter o agrément do primeiro-ministro. 

Mas isto são suposições. A realidade é o incómodo que António Costa tem mostrado nesta questão. 

Primeiro, foi levar o caso ao Conselho de Estado, para este se pronunciar sobre se ele deveria ou não responder às perguntas do juiz Carlos Alexandre. 

Seria natural que, não tendo nada que ver com o assunto, mas havendo um seu ministro envolvido, António Costa fosse o primeiro a dispor-se a ir à presença do juiz para pôr tudo em pratos limpos. 

Mas não o fez: pediu ao Conselho de Estado para se pronunciar, este ‘autorizou-o’ a responder por escrito, e ele assim fez. Acontece que, num depoimento por escrito, a pessoa defende-se muito melhor: diz o que quer, não diz o que não quer, não se sujeita a perguntas ‘difíceis’ e nunca cai em contradição. Na verdade, sendo o depoimento lido e relido pelos seus assessores, nunca poderia conter incoerências.

Mas houve mais.   Dois dias depois de enviar o depoimento ao juiz, o primeiro-ministro publicou-o no site do Governo, violando o segredo de Justiça.
Não se atribuiu muita importância ao assunto, considerando-o uma questão formal. E o advogado Magalhães e Silva saiu logo em defesa do primeiro-ministro, dizendo que a lei protegia a sua conduta pois a publicação do depoimento cabia no princípio da ‘defesa da honra’.
Ou seja: tendo sido publicadas na imprensa declarações truncadas das declarações de António Costa, este teria direito a divulgar integralmente o que dissera para pôr os pontos nos ii e defender a honra.

Mas eu pergunto: só António Costa é que tem honra? Os outros cidadãos não têm? Ora, generalizando este argumento, todas as pessoas envolvidas em processos judiciais teriam o direito de quebrar o segredo de Justiça exatamente com o mesmo argumento: para ‘reporem a verdade’ relativamente a notícias e declarações publicadas na comunicação social. 
Para toda a gente, a violação do segredo de Justiça passaria a ter cobertura legal 
Mas, para lá disto, a publicação do depoimento de António Costa levanta outra questão delicadíssima.
O segredo de Justiça existe, também, para que as testemunhas não conheçam os depoimentos umas das outras, podendo cair em contradição – sendo essas contradições muitas vezes decisivas para a descoberta da verdade.
Ora, conhecendo o que disse António Costa, as outras testemunhas não entrarão em contradição com ele. Todas tenderão a corroborar as suas declarações. Já sabem o que devem dizer ao juiz… 

Volto ao início: dado o mistério em que se tornou este caso, o primeiro-ministro deveria ter tido relativamente a ele um comportamento mais transparente. Mas foi opaco. Primeiro, não se dispondo a ir esclarecê-lo pessoalmente perante o juiz Carlos Alexandre. Depois, escudando-se atrás do Conselho de Estado para responder por escrito. Finalmente, divulgando na íntegra as suas declarações.
O comportamento de António Costa em todo este assunto foi tudo menos o que se esperava de uma pessoa inocente.