Ordens contra despenalização da eutanásia: “Antes de falarmos sobre a morte há muita coisa a fazer pela vida”

As Ordens deram parecer negativo às propostas de diplomas dos partidos e assumem-se contra a despenalização, mas a posição não é unânime. Projetos-lei preveem objeção de consciência. 

Caso a eutanásia venha a ser despenalizada, o processo será acompanhado por médicos e enfermeiros, mas deverá ainda motivar muitos debates e reflexões – e, em última instância, acabará por depender da posição individual de cada profissional. 

As Ordens deram pareceres negativos aos projetos apresentados pelos partidos, que incluem a salvaguarda de que médicos e enfermeiros poderão declarar-se objetores de consciência.

Quantos o fariam é a incógnita. Um estudo divulgado no ano passado pelo CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde e que envolveu 251 médicos (sendo que existem cerca de 40 mil médicos registados na Ordem) – revelou que mais de metade (55%) concordava com a eutanásia a pedido de um doente com doença incurável ou terminal e sofrimento insuportável. Mas não há resposta à questão de quantos médicos ou enfermeiros estariam dispostos a, no último momento, dar medicamentos em doses letais aos doentes.  

Sem lugar na prática médica, diz bastonário dos Médicos

Os pareceres das Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros sobre os projetos apresentados pelos partidos, submetidos ao Parlamento entre dezembro e janeiro, são taxativos na recusa da despenalização. Tal como em 2018, a Ordem dos Médicos e antigos bastonários pediram uma audiência ao Presidente da República para apresentar um manifesto contra a eutanásia. 

Miguel Guimarães é perentório na recusa de que a morte medicamente assistida possa ser considerada um ato médico, posição deixada também clara nos pareceres elaborados pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem (CNEDM) e que concluem que «a Eutanásia e o Suicídio assistido, sob a designação de ‘morte antecipada’, NÃO poderão ter lugar na prática médica segundo a legis artis e a ética e deontologia médicas».

Miguel Guimarães lamenta a ausência de debate e a confusão de conceitos, nomeadamente entre eutanásia e distanásia. «Algumas pessoas ainda não perceberam que eutanásia é matar, o que é diferente de deixar morrer e não se prolongar a vida de forma artificial e desproporcional, que é algo que o código deontológico médico proíbe», disse esta semana ao jornal i. 

Nos pareceres, o CNEDM considera que há muito por fazer no acesso a cuidados paliativos e que, ao ser necessária a intervenção de um médico para aceitar o pedido de matar ou proporcionar meios para tal, «o doente perde autonomia e remete-a para ‘o médico responsável’», advertindo também que as condições de doença fatal não estão devidamente delimitadas. «A aprovação de uma lei, nos termos que se perspetiva e com uma prioridade questionável, visando embora procurar soluções para problemas relevantes do fim da vida, fá-lo com soluções eticamente incorretas, sem a devida ponderação do valor da vida em pessoas muito vulneráveis», lê-se nos documentos.

‘Não é esta a prioridade’

Já o parecer da Ordem dos Enfermeiros considera que os conceitos de morte medicamente assistida e de suicídio assistido «carecem de maior clarificação e maturação quer quanto à regulação quer, essencialmente, quando ao fundamento (…) Até que se obtenha um necessário e alargado consenso ético relativamente a estas matérias, a sua discussão não pode ou deve sobrepor-se ou antecipar-se à necessidade de assegurar uma Rede Nacional de Cuidados Continuados e Paliativos adequada, competente, eficaz, eficiente e de fácil acesso para todos aqueles que necessitam ou venham a necessitar de cuidados, bem como centrada na qualidade e dignidade dos cuidados ali prestados à pessoa em situação de vida». 

Sobre as propostas em concreto, a Ordem entende que a abordagem, centrada no papel dos médicos, devia ser multidisciplinar e também que recusa a intervenção dos enfermeiros sob supervisão médica. O veredicto é de que falta «maturidade» às iniciativas. 

Ao SOL, a bastonária Ana Rita Cavaco reitera a posição. Assumindo que pessoalmente é a favor da despenalização – em 2016 subscreveu a petição a petição Direito a Morrer com Dignidade -, Ana Rita Cavaco defende que não é o momento para avançar. «Antes de falarmos sobre a morte há muita coisa a fazer pela vida. Temos pouquíssimas unidades de cuidados continuados e todos os dias recebo pedidos de apoio de pessoas que precisam de estar em cuidados paliativos e não há vagas. O rácio de enfermeiros é uma miséria, não existem condições para apoiar os doentes em fim de vida. A nossa prioridade tem de ser essa e depois, então, fazer esta discussão».

‘A lei cria mais pressão para que haja cuidados paliativos’ 

A posição assumida pelas Ordens não é consensual entre médicos e enfermeiros e continuarão a esgrimir-se argumentos. Uma petição lançada pelo Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade como um apelo à despenalização da eutanásia subscrito por profissionais de saúde juntou nos últimos dias mais de 500 assinaturas. O Movimento lançado em 2016 por João Semedo e por Laura Ferreira dos Santos, das figuras que mais se bateram pela morte assistida, teve desde o início o apoio de médicos e enfermeiros, entre eles Francisco George, Júlio Machado Vaz. 

Ao SOL, Constantino Sakellarides, médico e professor jubilado da Escola Nacional de Saúde Pública, também signatário, defende que este é um caminho que será feito independentemente do que vier a ser o resultado das atuais iniciativas. «Com referendo ou sem referendo, este ano ou no próximo, este caminho é o que se verifica em todos os países avançados e com bons serviços de saúde», diz. «Todos partilhamos o valor da vida. A partir daqui há duas posições: os que pensam que o valor é absoluto em qualquer circunstância, uma posição respeitável. Há outra forma de pensar que diz que há circunstâncias que implicam uma posição de exceção e que o valor da vida pressupõe morrer bem, que não devemos morrer em sofrimento. Na minha opinião, esta posição é tão respeitável como a primeira, a diferença é que eu não pretendo influenciar outros a assumir os meus valores. Do outro lado não é  assim». Já o enfermeiro José Azevedo defende que em causa deve estar sempre o ‘bem maior’ para o doente e adverte que essa é a principal cautela a ter, para que não haja pressões de familiares e profissionais de saúde nem para antecipar a morte nem para prolongar a vida, o que hoje também acontece, diz. 

Para Sakellarides, as propostas de lei são cuidadosas em relação ao riscos de abusos, que admite que podem sempre existir. Mas contesta o argumento da falta de cuidados paliativos: «Se a comissão de verificação  entender que a pessoa pede eutanásia porque não tem acesso a cuidados paliativos, o caso é recusado. Esta lei cria mais pressão sobre a criação de cuidados paliativos do que a sua não existência». 

‘10 milhões decidem melhor que 230’, diz Oliveira e Silva

Sakellarides rejeita a proposta de um referendo, por reduzir uma questão complexa a sim e não. Para Miguel Oliveira da Silva, antigo presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que há quatro anos defende a realização de um referendo sobre a eutanásia, são os valores da vida mas também de liberdade e autonomia que estão em causa e merecem uma reflexão ampla e a auscultação dos portugueses. 

O médico e professor de bioética publica na próxima semana o livro Eutanásia em Portugal – Quem Tem Medo do Referendo. Ao SOL, defende que só por receio do resultado os partidos não aceitarão o referendo. «Numa matéria destas, dez milhões portugueses decidem melhor do que 230 deputados, sobretudo quando as propostas não fizeram parte dos programas dos principais partidos». Oliveira da Silva argumenta que não se pode falar em liberdade quando as pessoas não têm à partida opção de ter cuidados de qualidade e só 20% dos que precisam têm acesso a cuidados paliativos. «Não era isso que acontecia na Holanda e na Bélgica quando a discussão foi lançada. Hoje em dia em Portugal, à excepção de quem pode ir ao privado, não se pode escolher. Há dois anos, a AR votou contra e uma das conclusões foi que era preciso reforçar os cuidados paliativos. Não aconteceu. A ausência de cuidados paliativos é uma forma de coação que anula a liberdade».