Eutanásia: quem decide?

A pergunta sobre quem decide a possibilidade da prática da eutanásia coloca-se relativamente ao universo dos decisores – toda a comunidade ou apenas os seus representantes – , mas coloca-se também sobre os fundamentos e circunstâncias da decisão e da sua aplicação.

A questão sobre a decisão relativa à eutanásia coloca-se agora na sequência da iniciativa popular de referendo sobre o tema quando a Assembleia da República se prepara para decidir sobre a sua despenalização menos de dois anos sobre a votação em que a eutanásia foi chumbada no Parlamento.

A eutanásia é um tema muito complexo e envolve conceções sobre o valor da vida, a dignidade e a solidariedade. A introdução desta possibilidade abala os fundamentos e os princípios da sociedade. A opinião de cada um envolve convicções e sentimentos individuais que, perante situações concretas, colocam dúvidas e podem ser contraditórios. A vivência em sociedade eleva a complexidade pelo facto de as decisões afetarem a comunidade na partilha de valores e de conceitos.

O que está em causa é decidir sobre um ato que é irreversível – a morte – que, de acordo com os projetos em discussão, carece de validação médica e tem origem em circunstâncias subjetivas como o ‘sofrimento extremo’ que é variável em função de cada pessoa e em função de cuidados paliativos adequados, ou como ‘doença incurável’ cuja classificação a evolução da medicina tem alterado. Trata-se de um ato sujeito a erro (erros) que é irreversível.

O sofrimento será sempre subjetivo mas merecedor de respeito. Mas pode ser aliviado (quase eliminado) com cuidados paliativos adequados. Quantos casos de ‘sofrimento extremo’ poderão deixar de o ser com cuidados paliativos? Em Portugal, apenas 30% dos doentes em fim de vida têm acesso a cuidados paliativos. Seis distritos do país não têm qualquer equipa de cuidados paliativos. Quantas mortes por eutanásia poderão ser evitadas com cuidados paliativos decentes?

O sofrimento torna-se ainda maior e mais subjetivo quando envolve as preocupações com o ‘encargo’ e o ‘incómodo’ causado a familiares e amigos, que se agrava em situações de maior fragilidade social e económica em que a dificuldade de aceder a cuidados paliativos aumenta. Existe uma dimensão de injustiça social intolerável na despenalização da eutanásia no atual cenário de cobertura insuficiente de cuidados paliativos.

Persistem muitos equívocos sobre conceitos e falta de informação. Confunde-se com frequência a eutanásia com práticas já permitidas. O testamento vital permite a cada cidadão definir os tratamentos a que quer ser sujeito e os que não quer, decidir sobre o prolongamento artificial da vida, etc. ‘Desligar a máquina’ é permitido sem a despenalização da eutanásia, mas muitos associam a esta condição.

Existe desconhecimento sobre as consequências da despenalização da eutanásia verificadas nos (poucos) países onde é permitida. São casos que têm evoluído rapidamente, com eutanásia em crianças, em doentes mentais ou em casos ‘apenas’ de alegado sofrimento psicológico. Nos Países Baixos é discutida a possibilidade dispensa gratuita e sem receita médica de um comprimido letal para idosos ‘cansados de viver’. O caminho para uma certa banalização da ‘morte a pedido’ impõe uma séria e ponderada reflexão.

Em Portugal o debate e aprofundamento sobre as causas e consequências da eutanásia está por realizar. Embora os Deputados tenham legitimidade formal para decidir sobre a eutanásia, não se compreende a insistência em legislar menos de dois anos depois de o assunto ter sido recusado. Uma questão com complexidade e sensibilidade como a eutanásia deve obrigar à ponderação e a uma maioria alargada. Uma decisão com profunda consequência social deve convocar todos os cidadãos através de referendo que enforme a decisão da Assembleia da República.