Temos Orçamento. E agora?

Não recordo um debate orçamental tão pífio como o deste ano. Só não consigo perceber a razão das maratonas, nem a necessidade do cansaço dos deputados para um debate tão estéril.

Quando ouvi os argumentos das diferentes forças partidárias no debate final do Orçamento do Estado, lembrei-me logo das palavras de Arnaldo Matos, comentando a aprovação da Constituição da República Portuguesa, em 1976. Cito de memória, substituindo a palavra Constituição por Orçamento: «O Orçamento foi aprovado. Os problemas do povo estão resolvidos! O povo não tem casa? Abriga-se no Orçamento. O povo tem frio? Embrulha-se no Orçamento. O povo tem fome? Come o Orçamento».

Não recordo um debate orçamental tão pífio como o deste ano. Só não consigo perceber a razão das maratonas, nem a necessidade do cansaço dos deputados para um debate tão estéril. Que boas horas de sono foram perdidas! E não estou a ser irónico.

A entediante sessão foi apenas ‘abrilhantada’ pela magna questão do IVA sobre os consumos de eletricidade. Se era esta a matéria mais importante do Orçamento… vou ali e já venho. E, contudo, foi à volta dela que se tentaram as coligações mais abstrusas, que deram o mote para o gozo do Dr. Centeno: «Umas coisas em forma de assim… umas gerincoisas!». Os arranjos foram tão artificiais que, na manhã seguinte, já o PSD dava uma cambalhota de todo o tamanho e admitia a possibilidade de um ziguezague, em relação à posição assumida na véspera.

Outra estrela do espetáculo foi a ampliação da rede do Metropolitano de Lisboa: linha circular, como pretendia o Governo, ou prolongamento para norte e para oeste, como defendiam os deputados das gerincoisas. Não discuto o mérito dos posicionamentos, numa matéria de que só sei o que leio nos jornais. Só não percebo o escândalo perante aquilo que é o bê-á-bá da atuação dos partidos: defender as posições das zonas onde poderão ir captar mais votos. É certo que a análise dos fundamentos de cada opção, e da correspondente relação custo/benefício, foi substituída por declarações oportunistas e de uma superficialidade inquietante, mas… será isto uma novidade no nosso Parlamento?

Só em terceiro lugar vieram as touradas e o seu IVA. Foi aí que a indigência dialética emergiu, em vergonhoso primarismo: de um lado, os que amam os animais, do outro, os bárbaros que gostam de ver o sangue a escorrer. Não é a primeira vez que as touradas dividem o povo. Em plena primavera marcelista, uma distração da censura deixou passar os versos que Ary dos Santos escreveu e Fernando Tordo cantou: ‘Não importa Sol ou sombra, camarotes ou barreiras’… Cinquenta anos depois, continua a não importar, salvo para quem usa a mesquinhez como arma política, como se os problemas do povo se resolvessem ao som de pasodobles… entre ‘brados e olés dos nabos’.

O tempo em que o Orçamento era motivo para discussões aprofundadas sobre as políticas públicas, que eram, depois, vertidas em planeamento de médio e longo prazo – as Grandes Opções do Plano – passou há muito. Acontece que, este ano, o Parlamento resolveu ir mais além e dar o golpe de misericórdia no debate orçamental. Data da morte: 6 de fevereiro de 2020.