Sandra Felgueiras: ‘Nem todos os jornalistas são efetivamente livres’

É uma apaixonada pelo jornalismo de investigação e, por isso, aceitou dar a entrevista. Não quer ajustes de contas, mas quer a reposição da verdade. ‘Nós, os jornalistas de investigação, existimos para sermos incómodos, não é para sermos bananas’.

O que é para si jornalismo de investigação?

Começa no instante em que recebemos denúncias que têm de ser validadas com prova documental e prova testemunhal, em que nós temos de garantir que o facto que ali está é efetivamente verdadeiro. Diria que 50% das denúncias que nos chegam são falsas ou não passam sequer o crivo da validação e vão para o lixo. Naturalmente haverá sempre quem se aproveite dos jornalistas para fazer o exercício que não querem ou não têm coragem de fazer no palco certo que é a Justiça. Tenho como crivo para o jornalismo de investigação que lidero o interesse público e a relevância dos factos em apreço. Não me interessa apenas que seja verdade. Interessa-me que tenha interesse público e relevância nacional. Poderá haver um assunto que seja absolutamente verdade e que seja apenas uma querela entre privados, entre partes e que não interessa nada divulgar. Mas há sempre aqueles assuntos que adquirem, para mim, maior importância. Nomeadamente aquilo que tem a ver com o dinheiro público. Por isso é que se forem ver o tipo de programas que faço, incido muito em tudo o que tem a ver com o setor público. Porque Portugal é um país que depende muito do Estado, toda a vida dependeu e vive muito à conta do Estado. Há muita subsídio-dependência no sentido em que há muito dinheiro que circula por portas que nós não conhecemos sequer, das mais diversas maneiras. Seja por contratação pública feita diretamente com o Estado, seja por IPSS [Instituições Particulares de Solidariedade Social], como o escândalo que andamos agora a revelar da Associação Mãos Unidas… Há mil e um esquemas, seja através de desvios fundos comunitários, para muitas pessoas se aproveitarem do sistema. O jornalismo de investigação que faço parte quase sempre de uma denúncia. E digo quase sempre porque há muitos assuntos que não provêm de denúncias. Investigámos em profundidade o caso Tancos e não proveio de nenhuma denúncia, foi um facto consumado que foi um roubo. Também temos esta necessidade de às vezes olhar para a realidade e procurarmos nela as respostas àquilo que falta e que não são possíveis de dar no dia-a-dia porque exigem outro tipo de investigação. É um dos maiores exemplos dos contributos que damos ao país em nome da verdade.

Apostaram muito no caso de Tancos. 

Revelámos um ano antes tudo o que o DCIAP acabou por verter para acusação pública. Fomos nós que, sem medo, expusemos a ligação do ex-ministro Azeredo Lopes e da casa militar do Presidente da República ao caso, demonstrando que receberam informação sobre a encenação e não a denunciaram. E este caso prova o que penso hoje: o país precisa de ter a certeza que já não há intocáveis. Que no ‘país das cunhas’ há pessoas como nós que não estão disponíveis para negociar calar a verdade. A verdade é inegociável porquanto só existimos para a revelar.

Nas denúncias que recebem qual é a percentagem… 

50% das denúncias são falsas ou são vinganças. Às vezes vejo que há quase uma tentação do jornalista de, a meio da história, achar que não pode abortar aquilo porque já entrevistou três ou quatro pessoas, porque já teve de ir a um cartório, ao portal da Justiça, ao BASE, e de repente percebe que a notícia não é assim. Mas acontece. E o que digo sempre à minha equipa, e já fiz dezenas de vezes e farei as vezes que forem necessárias, é que a partir do instante em que tenho a perceção de que aquilo não é assim, aquilo não vai para o ar. E é esta disponibilidade de espírito que nós temos de ter: de, do início ao fim, testar uma possibilidade que pode sempre ser alterada. Nunca me posso impor ao facto. Se não for não é e eu paro. E por isso é que para mim o jornalismo de investigação é tão difícil de ser feito. Esta responsabilidade, que ao mesmo tempo é uma liberdade, obriga-nos a ter um sangue frio desgraçado. Não é qualquer pessoa que depois de ter trabalhado horas e horas a fio olha para o produto e diz que é tudo para o lixo. Porque se não for para o lixo é uma mentira que se vai lançar para a opinião pública, são vidas que se estragam. É este fator de responsabilização de uns e de outros que tem de ser sempre acautelado neste tipo de jornalismo.

Qual a diferença para as notícias diárias?

Normalmente, por definição, são temas mais sensíveis. São temas de uma dificuldade de prova que não pode ser feita de um dia para o outro. Se assim não fosse não era jornalismo de investigação. Diria que, além do modus de trabalho, do nosso método, é um jornalismo que exige da parte de quem o faz uma responsabilidade, uma dedicação e capacidade de desprendimento para, se for preciso, deitar todo o trabalho ao lixo. Não acredito – e trabalho exclusivamente em jornalismo de investigação há oito anos – que seja possível fazer este tipo de jornalismo sem ser com muita profundidade, muito rigor e muita noção daquilo que tem de ser dito. Para isso tem de ser feito por pessoas que no seu âmago tenham bom caráter. A RTP tem a obrigação de ser o palco da investigação jornalística em Portugal, porque a investigação é um dos maiores e melhores serviços públicos que uma televisão do Estado pode prestar. E quem pensa o contrário deveria reler a carta de concessão e olhar para o que é feito em países como o Reino Unido, França e Alemanha.

Foi acusada de estar contra o PS. Nunca sentiu que lhe fizeram alguma denúncia para ver se tinha essa imparcialidade ou não?

Se isso aconteceu confesso que nunca me apercebi. Acho que todas as pessoas que conhecem o meu trabalho em profundidade saberão que esse argumento é o argumento falacioso de quem pretende misturar factos e contaminar a opinião pública com mentiras. Nós no Sexta às 9 fizemos histórias de todos os partidos políticos sem exceção. Aliás, no encerramento da temporada anterior, no Natal, fizemos uma reportagem sobre o CDS e dinheiros do CDS numa casa envolvendo uma secretária de Estado angolana. Não temos nem nunca tivemos qualquer tipo de barreira ou limite para investigar A, B, C ou D salvo, excecionalmente, o momento infeliz que vivi na RTP na última direção de informação e do qual já dei eco público. Fui ao Parlamento dizer o que pensava e foi o único momento da minha vida em que senti que havia balizas. Até então nunca tinha sentido e, sinceramente, hoje julgo ter virado essa página e também não sinto que haja balizas para aquilo que é o exercício da minha função de coordenadora de um programa que é livre, independente e que conta apenas aquilo que tem a certeza de ser verdade. Agora, poderá ter acontecido? Poderá. Que eu tenha percebido, não. Todas as notícias e investigações que fizemos visando o PS – e não foi o PS, foi o Governo – fizemo-las por manifesto interesse público. E se me perguntarem hoje, eu tê-las-ia feito todas, da mesma maneira, sem qualquer tipo de margem para dúvidas. Podem perguntar-me porque falei mais do PS, do Governo, do que falei do PSD ou do CDS. Por uma razão simples: o PS é que está no poder. Entendo esta missão do jornalismo de investigação como um serviço público que presto de verificar quem é que efetivamente, usando o dinheiro público de todos nós, pode ou não usá-lo mal. E digamos que qualquer pessoa consegue entender que quem está no poder mexe com o dinheiro público e que quem não está no poder normalmente não mexe. Portanto, serão esses que estão mais diretamente debaixo do nosso olhar crítico. E o que aconteceu nos últimos tempos – e modéstia à parte sinto-me à vontade para dizer isto – no jornalismo de investigação que foi sendo feito, televisivamente falando, nós assumimos o comando dessa operação porque fomos aqueles que se preocuparam mais com essas temáticas. Acho que elas são de profundo interesse público. Isto tem a ver com, se quisermos, o foco dos programas. Há vários programas de investigação jornalística no ar. Uns têm o foco mais voltado para os temas sociais, nós sempre tivemos um foco muito político. Dir-me-ão porque eu também trabalhei na política. Talvez. Porque nasci numa família de políticos. Não vou dizer nunca que aquilo que faço é desprendido daquilo que sou. O meu olhar sobre a realidade e os factos onde eu vejo notícias não podem ser desprendidos. Há uma coisa que é absolutamente verdade: nunca, no exercício da minha profissão, fiz nada em conflito de interesses com a pessoa que sou. Seja porque tenho uma carga hereditária à qual nunca reneguei e da qual tenho muito orgulho. Percebo quando as pessoas dizem ‘a fulana tal atacou o PS’. Sei o que é que está por trás e não tenho problema nenhum em que as pessoas falem. Preciso é que sejam corretas, justas e que digam o que é. Se alguém, algum dia, me conseguir apontar uma investigação só, na minha carreira toda (e já lá vão 20 anos) em que tenha favorecido ou prejudicado A, B, C ou D que tenha tido ligação direta com a minha vida, aí estamos à vontade para falar.

Num dos casos mais polémicos, disseram que não teve tempo para investigar e que a reportagem não estava pronta para ser transmitida antes das eleições.

O que é redondamente falso. Vou explicar-vos como é que nós funcionamos com poucos recursos, como de resto foi sobejamente dito e que continua à data de hoje a ser verdade – esperemos que mude em breve. Mas como é possível fazer um programa de investigação semanal com muito rigor, com provas factuais, documentais e testemunhais à prova de bala para serem transmitidas a cada sexta à noite? Só é possível com muito trabalho e com uma grande dose de capacidade para gerir fontes, que é isso que acho que é a minha matriz. Trabalho porque as pessoas confiam em mim, porque sempre tive e tenho, graças a Deus, muitas fontes que me dão informações preciosas, permitindo-me chegar a pontos onde, eventualmente, grande parte dos jornalistas não consegue chegar. Às vezes mais depressa que eles. Não há nenhum jornalista que possa dizer, sem estar a mentir, que nós não chegamos lá mais depressa porque temos uma fonte melhor. Claro que toda a gente que tem fontes melhores chega mais depressa a mais sítios onde os outros demoram mais tempo a chegar. No caso do lítio, foi uma investigação que começámos em março. Tivemos mais do que tempo para investigar o lítio e tivemos as fontes certas e a chave para chegarmos às conclusões que chegámos e apresentámos. O caso do lítio é uma daquelas histórias que não pode nunca ser contada sem contarmos o que aconteceu e que foi transmitida logo a seguir às eleições. Já fiz mil e uma histórias com tanto impacto como aquela que não tiveram a mesma atenção do público. Aquela teve escrutínio público até ao nível do método. Do que eles fizeram, quem é que eles tinham, quem é que eles não tinham… Nunca tive uma reportagem que fosse tão dissecada. De repente, quase que me perguntavam como é que comecei, quem entrevistei em primeiro lugar, em segundo, em terceiro, onde…

Quem perguntava isso?

Quando o assunto se tornou um assunto nacional, várias pessoas. Não estou a falar da direção, estou a falar até de colegas jornalistas. Porque o caso assumiu entre todos um domínio de questionamento do que aconteceu, porque pareceu praticamente impossível que se tivesse adiado uma investigação daquelas. Às vezes, as questões mais simples tornam-se as mais complexas porque parece difícil de acreditar que uma investigação daquelas tivesse sido adiada, certo? Mas foi. Quiçá por inépcia, quiçá porque as pessoas não se aperceberam. Nunca terei capacidade para fazer esse juízo de valor, do que levou a que Cândida Pinto e Maria Flor Pedroso tivessem adiado o Sexta às 9. Só a cabeça delas o dirá. Sei que elas sabiam em rigor e em detalhe o que estava a fazer e sei que por alguma razão, que só a elas lhe assiste e que só elas podem e devem saber explicar, não quiseram pôr antes das eleições e quiseram pôr depois.

Por que que acha que Cândida Pinto e Maria Flor Pedroso continuam a dizer que não tinha a reportagem pronta? O que as leva a dizer isso?

Não vou nem nunca irei fazer apreciações de caráter das pessoas, mas efetivamente não consigo perceber, à luz da razão, como é que alguém, neste caso um ex-diretor de informação, que acaba demitido por uma questão tão grave como esta, que implica intromissão no trabalho de jornalistas, não consiga reconhecer que errou. Acho que todos os seres humanos e todos os profissionais podem a determinado momento errar. Só não erra quem não anda nesta vida e quem não lida com reportagens. Não reconhecer o erro é algo que a mim me causa muita perplexidade e até estranheza porque não sou eu apenas que digo que a reportagem estava pronta. A reportagem foi assinada por um jornalista chamado Luís Miguel Loureiro e por mim. O jornalista Luís Miguel Loureiro disse de viva voz comigo e com toda a equipa a ouvir, escreveu, comunicou à ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social] que a reportagem estava pronta. Se quisermos discutir o que é estar pronto… Se uma reportagem só está pronta quando está editada, a reportagem não estava pronta. Mas a reportagem estaria pronta para ser editada, só não foi porque não havia ordem de transmissão. Se dizem que não estava pronta, não consigo encontrar outras palavras no léxico português para dizer isto de outra maneira: mentiram ou faltaram à verdade.

O que espera que aconteça?

O processo que vivemos não está encerrado com a demissão. Espero que a ERC e a Comissão da Carteira profissional de jornalistas atue, como tem de atuar, com independência e avaliando apenas os factos. Os factos são inequívocos e se não houver consequências terei de constatar que algo de muito estranho tomou conta de quem tem obrigação de zelar pelas boas práticas e, em última instancia, por garantir que o jornalismo seja independente do poder político.

Uma das críticas que lhe fizeram no caso concreto do lítio foi que a reportagem não deu o outro lado, a empresa que contestava. 

É muito simples: basta ir ao primeiro episódio sobre a investigação do lítio. Esta investigação começou em março, feita por mim e por uma repórter que não está neste momento no Sexta às 9, que se chama Andreia Filipa Novo. Tínhamos feito uma investigação à AI [Associação Empresarial] Minho, sobre a maior fraude de fundos comunitários de que há memória em Portugal, que começou a fase de instrução esta semana, e é quando vemos quem são os acusados da AI Minho que nós detetámos que são os mesmos que ganham a concessão do lítio. Quando fazemos a primeira investigação, em março, ainda não sabemos que os dois acusados da AI Minho, que por acaso são os dois sócios na empresa que consegue a concessão do lítio, que depois se separam. Logo no primeiro episódio damos conta. Aliás, o lead dessa investigação é ‘Acusados da AI Minho ganham concessão de lítio milionária’. É falso que não tivéssemos contado. Quem contou o perfil, o ADN e toda a história dos dois sócios que entretanto se zangam, fomos nós, no Sexta às 9. Sinto-me perfeitamente à vontade e perfeitamente segura de que tudo aquilo que apresentámos é 100% verdade.

Tem sentido muitas pressões?

Sempre disse, e disse-o com muito orgulho, que nunca me tinha sentido pressionada porque só se sente pressionado quem é pressionável. Continuo a não ser pressionável e acho que as pessoas têm mais receio de me dizer uma coisa a mim que dirão com mais facilidade a outros. Porque cada um de nós na nossa carreira acaba por criar um trilho e as pessoas também sabem a quem podem dizer e a quem não devem dizer. Nos últimos tempos vivi uma circunstância muito adversa em que, não tendo sido pressionada, percebi que se tivesse ido por outro caminho, a minha vida teria sido mais fácil. E interpreto isto como uma pressão para, às vezes, podermos fazer jornalismo de investigação de uma forma mais ligeira. Não temos de fazer de uma forma tão guerrilheira. Às vezes podemos atenuar os nossos alvos. E eu respondo sempre a mesma coisa: não tenho alvos. O país tem necessidades, não sou eu que tenho alvos. Não entendo o jornalismo de investigação como uma arma que me deram para a mão e que disparo contra quem me apetece. Sou demasiado responsável para pensar assim. Entendo a minha missão como algo muito difícil que deve servir o país e que deve servir a opinião pública para saber aquilo que deve ser sabido, não o que me apetece que eles saibam. Isto implica que tenha muita consciência e que afira com muito rigor. Raramente decido apenas pela minha cabeça porque acho que este tipo de decisões são decisões que devem ser colegiais, várias cabeças pensam sempre melhor. Não me sinto confortável é em dizer que não sei o que é sentir a pressão. Sei o que é sentir a pressão, nem que seja uma pressão inconsciente de me fazerem perceber que às tantas a minha vida podia ser mais tranquila se eu cedesse.

Há pressões profissionais, políticas ou até pressões familiares (sentir que a Sandra ou a família correm perigo de vida). Que tipo de pressões é que sofre?

Nenhuma das três. Nunca recebi uma pressão profissional direta, salvo aquelas que tornei públicas. Pressão profissional em que me dissessem que não posso, não devo ou não faço, nunca recebi. Mas recebi vários recados de pessoas que sei que comunicam umas com as outras, que indiciam que houve conversas e que houve recados e que se eu acatasse os recados a minha vida seria mais fácil.

Em que sentido?

Seria mais cómoda, eventualmente menos litigante dentro da minha própria empresa. Se quiserem entender isso como uma pressão profissional, acho nos últimos tempos sofri algumas pressões profissionais. Quando digo que houve várias pessoas que me ligaram e que não tiveram nada a ver diretamente – que eu saiba – com as pessoas em ‘guerra’, mas que podem estar relacionadas e que não terei nunca forma de provar. Se de há uns tempos a esta parte eu dizia que nunca fui alvo de pressões, que nunca recebi nenhuma chamada, hoje não consigo dizer o mesmo. Recebi muitas chamadas.

De políticos?

De políticos, por exemplo.

Para esquecer determinada história?

Nunca é dito nesses termos. É sempre dito de uma forma mais discreta, de darem a entender que há muitas outras histórias que podem ser dadas. Qual é a moeda de troca para um jornalista? É saber mais. Não vamos ter o furo A mas vamos ter o furo B. E vamos ter o furo B se não contarmos o A. Só que eu não negoceio. Se o A for história, o A vai ser publicado, não faço negociação entre o A e o B. Não é uma pressão direta, não é um aviso direto à navegação a dizer que me vai acontecer isto ou aquilo, uma ameaça à integridade física, à minha família. Nunca me aconteceu e espero que nunca venha a acontecer mas é isto que estou a falar. São estas insinuações que não são declaradas, estas meias palavras que até são ditas com candura.

A propósito das pressões, temos o exemplo do caso do ISCEM.

Nem isso foi dito assim. Entramos sempre no domínio da semântica seletiva. No caso do ISCEM, temos uma diretora de informação que declaradamente, numa reunião do Sexta às 9, diz que trabalhou no ISCEM, ainda trabalha e que ainda vai lá. E eu perguntei prontamente, perante toda a equipa do Sexta às 9, se haveria algum conflito de interesses uma vez que aquilo que estávamos a investigar eram negócios da atual presidente da instituição, que foi encerrada deliberadamente pela A3ES e que agora está em processo de venda do edifício e é esse processo de venda que estava em causa porque havia a possibilidade de aquela senhora estar a desviar dinheiro, a roubar dinheiro e há arquitetos que gravam a entrevista e contam isto. A entrevista já tinha sido gravada. Nunca a Maria Flor Pedroso me disse – e isso eu até admitiria como mais razoável – para eu não fazer a história, para não prosseguir a investigação. O que aconteceu de grave no caso ISCEM e que nunca admitirei que Maria Flor Pedroso desminta porque o confessou perante nove pessoas – cinco jornalistas do Sexta às 9, incluindo eu, e quatro do Conselho de Redação – que na sequência dessa conversa que manteve com a equipa, e sabendo conscientemente que estávamos a investigar a Regina Moreira, foi ao ISCEM, falou com a Regina Moreira – dito por ela –, foi à secretaria fazer perguntas sobre os pagamentos e nunca, em momento algum, me telefonou a dizer que o tinha feito. Mas ligou à Cândida Pinto e a Cândida veio dizer-nos que uma fonte dela, sem nunca nos dizer que a fonte se chamava Maria Flor Pedroso, e que por acaso tinha a relevância de ser nossa diretora de informação, lhe tinha dito que afinal a história não era como nós contávamos e que era melhor não avançarmos. Nem aqui houve frontalidade para dizer para não fazermos a história. E pior, que é isso que eu acho ainda mais perverso nesta página absolutamente negra do jornalismo português, isto foi feito entre uma das jornalistas que é considerada pelos seus pares uma das melhores de sempre, Cândida Pinto, diretora e uma jornalista júnior de 26 anos. Isto, de que o caso não era história, não me foi dito a mim. Foi dito a uma jornalista que por acaso estava no programa há 15 dias, três semanas. E por isso é que este processo do ISCEM é algo que como ser humano me custa acreditar que tenha acontecido. Se me perguntarem hoje qual foi a coisa mais grave que vivi como profissional da RTP, foi ter visto um diretor de informação assumir perante nove pessoas uma atitude de absoluto conflito de interesses sem nenhuma consciência da gravidade do ato. O que me chocou foi a facilidade com que ela assumiu algo que nunca poderia ter feito. E esta inconsciência dos atos leva-me a fazer a pergunta: será possível que nós vivamos entre jornalistas que não sabem ser jornalistas e que nem percebem isso? É que não consigo perceber que um colega faça isto a um colega. Como é que um diretor de informação faz isto a uma coordenadora de investigação?

Como viu a história do abaixo-assinado a defender Maria Flor Pedroso?

Com muita surpresa, porque ainda que consiga compreender a solidariedade entre pares, pessoas da mesma geração que se conhecem há muitos anos, que se respeitam mutuamente, que percebem que há toda uma carreira a preservar, porque essa carreira é muito mais vasta do que um simples erro, não consigo compreender que pessoas de enorme prestígio no nosso meio e de enorme influência perante a opinião pública possam ter cometido o erro tático de não perceber que o que estava em causa era um facto, uma atitude, que nenhum jornalista pode, em momento algum da sua vida, aceitar e muito menos apoiar. Nenhum jornalista pode apoiar que outro jornalista se intrometa, que interfira e que, no limite, boicote uma investigação de alguém. Só posso assumir que essas pessoas o fizeram por não conhecerem, de todo, o facto. Porque preferiram mergulhar numa cegueira coletiva de olharem apenas para quem era e não olharem para aquilo que a pessoa tinha feito. Costumo dar o exemplo: é como se, de repente, o melhor marido do mundo, que toda a vida teve um relacionamento impoluto à prova de bala, um dia chegasse a casa e matasse a mulher. E os amigos todos desse melhor amigo do mundo esquecessem que a mulher também era amiga deles e viessem apenas defendê-lo e dizer que não o podiam prender. Se quiserem, foi assim que me senti. Não vamos aqui fazer floreados em torno disto. Nós sabemos quem é que se relaciona melhor com quem, nós sabemos que há sempre os chamados jornalistas de elite. Não é porque sejam melhores jornalistas do que os outros que não são dessa elite. Talvez esses que não são dessa elite não queiram pertencer a essa elite porque significará algo no qual nem sequer se reveem. Mas essa elite que é muito mais próxima do poder, interagem com muito mais facilidade uns com os outros e protegem-se muito mais uns aos outros. Hoje sou uma pessoa muito mais iluminada. Todos os momentos difíceis da minha vida foram momentos em que aprendi. Com dor, com consciência de que nunca mais irei conseguir olhar para algumas pessoas da mesma forma porque não consigo ter esse desprendimento. 

Alguns dos que assinaram o abaixo-assinado?

Sim, entre os quais estão pessoas que assinaram o abaixo-assinado, porque não consigo compreender que façam algo que viola o dever de ser jornalista.

Alguém lhe ligou a pedir desculpa?

Tive um que me mandou uma mensagem. Acho que as pessoas, conhecendo-me como me conhecem, não teriam sequer coragem para me fazer uma chamada porque saberiam o que eu ia responder. Não tenho duas caras nem nunca tive. Digo sempre aquilo que penso porque não sou pessoa de me acanhar. Já disse várias vezes, até a superiores hierárquicos: ‘Fixem bem que o silêncio não me assenta’. Digo isto com muito à vontade. O à vontade de quem sabe que não mente. Acho que há muita gente que se esconde por trás da mentira para depois alimentar outros jogos. Não sou assim, nunca quis o poder. Quero é que nos deixem trabalhar e acho que a RTP é uma casa absolutamente fantástica, onde se pode fazer um trabalho extraordinário. Não há televisão que tenha os correspondestes que nós temos, não há televisão que tenha os recursos que nós temos ou que podemos e devemos ter.

Mas o Sexta às 9 não tem muitos recursos.

Não tenho no Sexta às 9 mas a RTP tem. A RTP tem recursos que nenhuma televisão portuguesa tem. Nenhuma televisão tem os correspondentes que nós temos. Hoje se quisermos estalar os dedos e fazer uma reportagem em Angola, nós fazemos uma reportagem em Angola. Isto é um património quase único. A facilidade de estar em todo o lado para nós jornalistas vale muito. Fazer de conta que isto não é muito é fazer de conta que não estamos no mundo em que estamos. Para finalizar a questão do abaixo-assinado, dizer que fiquei surpreendida, fiquei perplexa, não olharei nunca mais para algumas pessoas como olhava antes e acima de tudo fez-me ter consciência de um facto que às tantas já intuía mas não percecionava com tanta clareza: nem todos os jornalistas que nós vemos e consideramos como reputados jornalistas da nossa praça são efetivamente livres. Acho que tenho quase obrigação de dizer isto porque sinto-me livre. Nunca me inibi de fazer uma investigação quando entendi que ela deveria ser feita. Só há uma coisa que me trava, que é ser falsa, não ser verdade ou não ter interesse público. Só isto me pode travar, o resto não me trava. Percebi neste duro e longo processo que há muita gente que se trava por aquilo que dá mais jeito, por aquilo que é mais conveniente e porque há sempre, como vos dizia há pouco, a possibilidade de não ir ao furo A mas ir ao furo B e o furo B até me dá uma grande ‘cacha’ e ninguém sabe que eu tinha o furo A. Só que considero isso uma corrupção da alma. Um jornalista serve o país, não se serve a si próprio. Não existo para fazer uma carreira, apesar de ser muito bom ter uma carreira. Não existo para que me elogiem e quando me dizem com mais uma névoa de falsidade que o que o jornalistas de investigação faz é sensacionalismo, apetece-me sempre responder-lhes assim: se aquilo que faço na minha vida, que é contar a verdade com muito rigor, com muita exaustão, com muito discernimento, com muito peso do valor notícia, causa sensações nos outros que lhes arrepia até os ossos e os obriga a agir e a mudar consciências, então adoro ser sensacionalista. Se ser sensacionalista for outra coisa diferente disto, eu não sou. Mas nunca fui nem admito que me insultem. É sensacional que de repente tenhamos uma classe que olha para aqueles que dão notícias, sem nunca darem uma notícia, como os maus da fita. A verdade não tem preço, é o nosso limite, é para isto que existimos. Nós, os jornalistas de investigação, existimos para sermos incómodos, não existimos para sermos bananas. Só está nisto quem consegue estar. Há, de facto, pessoas que não conseguem estar mas se não conseguem estar, digam. Não critiquem quem consegue. É assim que às vezes me sinto, pessoas que olham para nós porque não conseguem fazer o mesmo. Não entro numa maledicência em relação aos jornalistas de desporto. Não sei nem nunca saberei fazer um relato de futebol mas não considero que seja um género jornalístico menor. Pelo contrário, acho notável. Não sou capaz de o fazer mas não desdenho de quem o faz. Só peço àqueles que não sabem fazer o que nós fazemos, pelas mais diversas razões, que não critiquem. Há pessoas que são ótimas jornalistas mas que não têm paciência para isto, é legítimo.

Como chegam as denúncias?

A maioria das denúncias chega através das mais diversas ferramentas das redes sociais. Chegam também muitas denúncias por email ou para o do Sexta às 9 ou para o da RTP. Mas também há aquelas que chegam por mensagens de pessoas que me conhecem.

Já não recebem cartas?

Mandam cartas e, curiosamente, há muitas cartas que vêm dirigidas à minha mãe. Acho que hei de trabalhar a vida inteira e ainda haverá quem me confunda com a minha mãe. Há muitas que vêm para a Senhora Doutora Fátima Felgueiras. De brincadeira, às vezes, levo para casa e pergunto à minha mãe se ela não quer abrir, ler e fazer um resumo. Obviamente é tudo a brincar e não acontece mas chegam muitas cartas ainda e sobretudo de pessoas mais velhas, que não têm computador e escrevem à mão. É muito difícil ler, faço um esforço enorme mas muitas vezes não consigo. 

A propósito da sua mãe. Como investigaria a história da sua mãe?

Essa é uma pergunta difícil mas para uma resposta fácil. Nunca investigaria a história da minha mãe.

Imaginemos que não era a sua mãe, mas outra pessoa.

Não sou capaz de fazer esse raciocínio. O facto de ter vivido o caso da minha mãe não me transformou em jornalista de investigação, já o era. Estaria longe de imaginar, como qualquer ser humano percebe, que iria acontecer o que tragicamente aconteceu à minha mãe. Decidi ser jornalista aos seis anos de idade e já sabia muito bem o que queria fazer, não sabia exatamente em profundidade o que era, mas era isto. O que aconteceu com a minha mãe passou-se quando tinha 22 anos, julgo eu. De qualquer das maneiras não seria capaz de fazer qualquer tipo de abordagem a essa pergunta e explico porquê. Se há algo que aprendi é a noção plena do conflito de interesses. Tudo aquilo que não posso abordar com racionalidade, não abordo. Jamais faria uma investigação a uma pessoa que me é próxima. Tive uma situação dessas há três ou quatro anos com uma pessoa que conheço perfeitamente, que acabou por estar envolvida numa investigação que o Sexta às 9 estava a fazer e o que eu fiz foi dar carta totalmente branca ao Luís Miguel Loureiro para ele desenvolver a investigação como entendesse. Jamais investigaria e nem sequer faria o exercício de pensar o que teria feito para investigar a minha mãe, de quem tenho muito orgulho. Mas há uma coisa que digo como ser humano e, se quiserem, como filha e não como jornalista: não acho legítimo que nenhuma pessoa investigue outra sem lhe dar direito ao contraditório. E respondo não como jornalista porque isto é das maiores amarguras que guardo como filha. Como jornalista não quero criticar os meus colegas que o fizeram, mas como filha sinto-me à vontade para dizer que não é possível fazer-se um trabalho que se pretende dizer sério e que termina numa absolvição total, por isso às tantas não terá sido assim tão bem feito. Não é possível terem feito esse trabalho sem alguma vez terem perguntado à minha mãe se tinha alguma coisa para dizer. Nunca faria isso a um entrevistado meu, nunca o fiz nem nunca o farei. Cada jornalista tem de ter consciência que a nossa capacidade de alcance é tão grande, mas tão grande que não podemos dar-nos ao luxo de haver um dia em que façamos pior apenas porque estamos aborrecidos. Isso não pode acontecer. Um médico não se pode dar ao luxo de um dia operar pior porque há alguém que pode morrer e nós não nos podemos dar ao luxo de um dia trabalhar pior porque há alguém cuja honra, cuja dignidade é afetada. Só peço a toda a gente que trabalha nisto e que goste, no mínimo, tanto como eu gosto. E enquanto for uma apaixonada pelo jornalismo vou continuar a fazer isto. No dia em que deixar de ter esta paixão que me corre nas veias, não faço isto.

A investigação hoje pode ignorar o trabalho dos hackers?

Quando comecei a fazer jornalismo de investigação, as ferramentas que tínhamos à nossa disposição eram com fontes abertas. O que faz um jornalista de investigação? Não faz escutas. As pessoas não pensem que quando ligo a alguém gravo a conversa. Nunca gravo. Só gravamos conversas telefónicas devidamente autorizadas. Porque é crime e eu não cometo crimes. Da mesma forma que não ligo uma câmara de televisão para alguém que não queira ser filmado. Os direitos de personalidade para mim existem e têm de ser respeitados, é assim que trabalho. Se trabalho com fontes abertas, trabalho com documentos públicos que estão acessíveis online, que estão disponíveis nos cartórios, nos registos comerciais, nos registos civis, nos registos de património e automóveis. É com isto que trabalho. Não tenho a possibilidade, como os senhores procuradores e a Polícia Judiciária, de fazer escutas telefónicas nem de intercetar conversas. Mas hoje em dia não posso fazer de conta que não há whistleblowers [denunciantes] que o façam. Não posso fazer de conta que, de repente, ainda que de forma criminosa, exista um Rui Pinto que acedeu a milhões de terabytes de informação que se tornou matéria-prima para trabalho de investigação jornalística. Ou vou fazer de conta que não sabemos o que sabemos sobre a Isabel dos Santos? E se tiver aquela informação não a vou trabalhar? As nossas medidas de combate ao crime dos tempos modernos não são as de antigamente. E nós, como sociedade, vamos ter de saber como é que nos situamos e comportamos perante elas. Enquanto jornalista de investigação sinto que hoje a necessidade de escrutínio de fontes de informação, de onde elas vêm, porque é que vêm agora e não vêm depois é muito maior do que antigamente. Acho que eventualmente pode haver um grau de manipulação superior àquele que nós imaginamos. E daí não ser imune àquilo que são os whistleblowers… A regra número um que digo sempre aos que trabalham comigo é que não há nunca uma fonte desinteressada. Um whistleblower não é uma fonte desinteressada e não pode ser tratado como tal apenas porque me facilita a vida. 

Sente-se um pouco marginalizada pelas tais elites que falou?

Nunca falo de como aqui cheguei porque me falam sempre primeiro na minha mãe, e eu não me desvio, porque sempre tive e tenho orgulho nas minhas raízes, mas chega a um momento em que penso que talvez não saibam bem quem eu sou, nomeadamente os nossos pares que não me consideram parte da elite: acabei o curso de comunicação com a média mais alta da faculdade, fui sempre a melhor aluna, fui elogiada por todos os meus professores, entrei para o Expresso através do concurso 20 novos valores. Entrei para a RTP a convite do Henrique Garcia e prestei provas. Só fiquei na RTP porque o Zé Rodrigues dos Santos me pediu muito e já nessa altura tinha muitas fontes. Fui convidada para a SIC Notícias e para a TVI com 22 anos. E nunca pedi um favor a ninguém para ser quem sou. Ganhei o prémio da Sociedade Portuguesa de Autores em 2019 e sinto que foi muito merecido. Consegui algo inédito. Ter criado o primeiro programa de investigação televisivo do país e tê-lo mantido com regularidade semanal – quase sempre sem meios e apesar das inúmeras pressões dos últimos tempos – no ar fez na segunda-feira precisamente 8 anos. Sim, fez esta semana 8 anos.

Neste momento qual é a relação com a direção da RTP ?

Muito boa, julgo eu, de confiança, respeito mútuo, viragem de página, na consciência de que todos podemos e devemos fazer mais pela RTP. É uma vontade de trabalharmos cada vez mais em equipa e de fazermos com que consigamos, na sinergia, trazer mais e melhor serviço público.