Regresso ao futuro?

Depois  de ilibado no tribunal de 1ª instância, vi-me arguido num processo-crime resultante da queixa de um ex-namorado da senhora jornalista…

Já não vivemos hoje no tempo, ainda relativamente recente, em que os editores tinham de conseguir vender alguns títulos antes de a censura os proibir e a polícia os apreender. Um tempo que parece esquecido por muitos que o viveram – e que cada vez mais gente lamentavelmente ignora.

O desafio maior aconteceu-me na editora Dom Quixote com o livro de João Martins Pereira Pensar Portugal Hoje: 10 000 exemplares vendidos e expedidos diretamente para os leitores antes de a polícia os vir apreender, como prevíramos. O editor era Carlos Araújo, coube-me a mim pensar e coordenar a operação. 
 
Agora, quando recentemente tive de considerar a possibilidade de editar um livro sobre a corrupção (que decidi não editar) – objeto de intenção legislativa do atual Governo e deputados – não posso deixar de pensar no processo judicial recente em que a Gradiva se viu envolvida pela queixa bizarra da senhora jornalista Fernanda Câncio de que José António Saraiva, no livro Eu e os Políticos, fizera uma invasão ‘gravíssima’ da sua (resguardadíssima, deduz-se) vida privada. 

Depois de ilibado no tribunal de primeira instância, vi-me arguido eu próprio num processo-crime resultante da queixa de um ex-namorado da senhora jornalista, de que nunca ouvira falar nem fixei o nome. E eis-me arguido aos 78 anos, combatente que fui desde que me lembro de mim contra a invasão da vida privada de quem quer que fosse, mais repugnante ainda – perdoem-me este obsoleto e preconceituoso sentimento – tratando-se de uma mulher. 

Fui, todavia, ilibado de mais esse processo pelo tribunal superior, como sempre esperei que acontecesse; venceram a inteligência e a Justiça. Mas ficou o espanto e uma inquietação. 

Ainda mais estranhamente inquietante pelo facto de outra editora, a Dra. Bárbara Bulhosa, se ter disposto a testemunhar contra mim. Para atestar, afinal, na prática e no efeito, o… inatestável: que eu não poderia ter deixado de ler previamente um livro daquela natureza. Na verdade não li e, exatamente por ser da natureza que era, não leria, mesmo que fisicamente o pudesse ter feito (e não tivesse a confiança que tenho no rigor e na ética do Autor). Mas, de facto, não pude fazê-lo.

Por isso, ao considerar hoje a possibilidade de publicar um livro sobre a corrupção, compreende-se que tenha dado comigo nesse exercício, que devia ser estranho na democracia, não da pertinência e ética da obra, mas da avaliação do risco de o editar. Da exigência de contenção que seria necessária, como outrora, na escrita dos textos de contracapa. 

Exercícios de sobrevivência imperativos no tempo do dito fascismo, quando, com Francisco Lyon de Castro, editor maior, Mestre e Amigo, me iniciei na atividade fascinante – intelectual e civicamente – que animou a minha vida. Editar para o conhecimento, a cultura, a liberdade.