As primeiras mil páginas

Não é todos os dias que acabamos de ler um livro com mais de mil páginas. 

Aconteceu esta semana e por causa disso lembrei-me do primeiro livro que li com essa dimensão: as aventuras do Engenhoso Fidalgo. De início, dava-me a impressão de que não conseguia avançar na leitura, uma vez que as folhas de papel-bíblia praticamente não tinham espessura. Lia, lia, lia, mas parecia-me que não conseguia sair do mesmo sítio.

Hoje, tê-lo levado até ao fim parece-me um feito assinalável, ainda para mais tendo isto acontecido na minha adolescência, uma fase da vida em que normalmente temos outras distrações e privilegiamos outros interesses.
Desbravar um livro com tamanha envergadura é uma espécie de guerra sem tréguas que se trava dia após dia. No início nem apresenta grande dificuldade. Apesar de termos a montanha toda para escalar, contamos com a frescura e o entusiasmo do início que nos empurra como um vento favorável. É quando esse entusiasmo começa a esmorecer que a coisa se complica. Convenhamos:chegar à página 300 e ter a noção de que ainda nos falta percorrer mais de dois terços do caminho pode ser desmotivador… Portanto, para levar o barco a bom porto, precisamos de paciência, dedicação, tenacidade – e uma fidelidade quase canina.

Em vez de ligarmos a televisão, lá vamos nós ler algumas páginas; em vez de pegarmos num jornal ou numa revista, avançamos mais um bocadinho no ilustre calhamaço; na hora de irmos para a cama, roubamos uns minutos ao sono e insistimos para lá do que seria aconselhável. Tudo somado, lá se começa a ver alguma coisa.

Se de início, quando tínhamos o livro aberto, o peso se concentrava todo sobre a mão direita, com o avançar da leitura as coisas começam a equilibrar-se: as folhas que se vão acumulando do lado esquerdo – que poderíamos considerar o território conquistado ao inimigo – ganham volume e dão-nos uma medida do tempo investido.

Há depois o momento decisivo em que atingimos a metade do livro e percebemos que o objetivo está ao nosso alcance. Ainda falta muito, mas daí em diante será sempre a somar. Até que – para continuarmos a usar a metáfora militar – chega aquele ponto em que entramos pelo território inimigo adentro e conquistamo-lo sem encontrar grande resistência. Já ninguém tem dúvidas acerca de quem vai ganhar a guerra.

Nesta fase costumo fazer um forcing final, uma última grande investida. Leio algumas dezenas de páginas – no caso do D. Quixote foram mais de cem – para precipitar o fim dos combates. Mas deixo ainda umas poucas, pouquíssimas páginas por ler, para saborear aquele momento único em que tenho o inimigo completamente à minha mercê e posso fazer dele o que quiser. E aí, claro, em vez lhe aplicar o golpe de misericórdia, aceito a sua rendição incondicional. Aguerra foi ganha.

Vendo bem as coisas, o que custa mais são as primeiras mil páginas. Chegados a esse marco, será difícil alguém conseguir travar a nossa marcha.