Polícias descontentes aos tiros com militares nas ruas do Haiti

“Não há dinheiro para a polícia mas há dinheiro para o Carnaval”, gritaram os descontentes, antes de abrirem fogo. Exigem também a demissão do Presidente, acusado de desviar ajuda venezuelana.

O Mardi Gras, ou Terça-Feira Gorda, costuma ser uma ocasião de grande festa no Haiti, com desfiles e celebrações coloridas. Este ano, tudo isso foi cancelado devido ao que o Governo haitiano apelidou de “situação de guerra”, com tiroteios nas ruas de Port-au-Prince, entre militares e polícias fora de serviço que exigem melhores condições, aumentos salariais e a demissão do Presidente Jovenel Möise, que está alegadamente envolvido no desaparecimento de dois mil milhões de dólares (mais de 1,8 mil milhões de euros) de fundos de desenvolvimento vindos da Venezuela.

“Estamos sob cerco, sob fogo de armas de todos os tipos, espingardas automáticas, cocktails molotov, gás lacrimogéneo”, afirmou ao jornal haitiano Nouvelliste o general Jodel Lesage, que dirige cerca de 400 militares em duas bases. Lesage assegurou que estão a defender-se com o que têm à mão. Segundo o ministério da Defesa, também o quartel-general das forças armadas foi atacado por “indivíduos encapuzados com armas de fogo”.

Os confrontos entre polícias fora de serviço e militares foram desencadeados por protestos que aproveitaram os cortejos de Carnaval para mobilizar os revoltosos, este fim de semana. Multiplicaram-se os bloqueios de estradas, com tijolos no chão, pneus e veículos queimados, bem como as manifestações. “Não há dinheiro para agentes da polícia, mas há dinheiro para o Carnaval”, gritavam, segundo o Guardian.

A situação degenerou rapidamente, este domingo, quando a marcha de polícias chegou aos Champs de Mars, na Baixa de Port-au-Prince, em frente ao palácio presidencial. “O terror reinou em certas áreas”, lamentou em comunicado o Governo haitiano. Nos Champs de Mars “foi ouvido fogo de armas pesadas quase todo o dia”.

O gatilho dos distúrbios pode ter sido as reivindicações da polícia, mas a crise política não é de agora. Desde que chegou ao poder, em 2017, a oposição acusa o Presidente Möise de fraude eleitoral. Não ajudou que Möise tenha de imediato ressuscitado o exército haitiano, desmantelado em 1995, pelo seu histórico de golpes de Estado. Mas a situação ficou muito pior quando o Presidente foi envolvido no escândalo PetroCaribe.

 

Dinheiro desaparecido O programa PetroCaribe foi uma parceria estratégica, montada em 2005 pela Venezuela de Hugo Chávez, que procurava aliados contra a influência norte-americana na América Latina. O Haiti, à semelhança de outros 17 países caribenhos, receberia petróleo das enormes reservas venezuelanas, pagando 40% de imediato e o restante até 25 anos depois, com taxas de juro muito baixas.

A ideia era que o Haiti – o país mais pobre do continente – usasse os cerca de quatro mil milhões de dólares que poupou em combustível com o PetroCaribe, entre 2008 e 2016, para desenvolver a sua economia, infraestruturas e serviços sociais. Contudo, uma investigação do Senado haitiano, em 2017, verificou que boa parte dos fundos foram desviados. Estimativas apontam para cerca de dois mil milhões de dólares desaparecidos – o equivalente a quase um quarto do PIB do Haiti em 2017.

Suspeita-se que Möise tenha estado envolvido neste esquema de corrupção antes de chegar à Presidência – dirigia a empresa de cultivo de bananas Agritrans, que recebeu contratos públicos suspeitos. Rapidamente se viralizou o hashtag em criolo #KotKòbPetwoKaribea (ou “onde está o dinheiro do PetroCaribe”, em português), o descontentamento tornou-se geral e os protestos massivos, mas o Presidente negou todas as acusações.