‘O maior perigo vem dos EUA, uma potência em declínio’

Michael Burleigh, historiador e comentador, deu aulas em Oxford e Stanford e venceu o prestigiado prémio Samuel Johnson para não-ficção em 2001 com uma nova história do Terceiro Reich. Em Portugal acaba de ser publicado Uma História do Presente: o melhor e o pior dos mundos (Edições 70).

Quando os chineses querem lançar uma maldição a alguém, dizem: ‘Espero que vivas tempos interessantes’. Acha que essa expressão se aplica à nossa época? São interessantes estes tempos que vivemos?

Esse ditado chinês não existe (da mesma forma que, quando Xu Enlai [primeiro-ministro da China entre 1946 e 1976] disse que era demasiado cedo para avaliar a revolução francesa, se referia ao Maio de 68 e não à de 1789). Estamos de facto num período muito interessante que vai encher páginas e páginas de livros de História (as épocas felizes, como disse Hegel, deixam páginas em branco).

Desde o fim da Guerra Fria o mundo está mais complexo e fluido. Hoje ligamos a televisão e somos bombardeados com notícias: é o processo de destituição de Trump, o Brexit, o coronavírus, o movimento pró-democracia em Hong Kong, protestos em Caracas… Consegue acompanhar o ritmo dos acontecimentos ou por vezes torna-se avassalador?

Sim, o ruído é incessante, 24 horas por dia e sete dias por semana. No entanto, conseguimos distinguir aquilo que pode ter importância em termos históricos: as relações entre a China, a União Europeia e os Estados Unidos; a Revolução Industrial 4.0, etc.

Podemos considerar-nos uns sortudos por sermos testemunhas de todos estes acontecimentos, de todas estas mudanças?

Provavelmente. Embora isso possa levar a uma espécie de desespero existencial, assim como àquela raiva de que estamos sempre a ouvir falar sem conseguirmos perceber o que a provoca.

Na sua opinião existe o perigo real de assistirmos ao eclodir uma Terceira Guerra Mundial – ou pelo menos um conflito de larga escala – durante o nosso tempo de vida?

Depende de quão paranoicos os americanos se tornarem em relação à China. Eles não conseguem lidar com um rival que adaptou a máxima de Coolidge para ‘o negócio da China são os negócios’ [Calvin Coolidge, Presidente americano antes da Grande Depressão, disse em 1925: ‘O negócio da América são os negócios’ – ‘The business of America is business’]. Os americanos só querem saber da guerra e dos seus brinquedos.

Acha que enquanto os EUA detiverem a sua supremacia militar esmagadora nós – o Ocidente – podemos dormir descansados?

A Rússia constitui apenas um incómodo marginal (os 27 Estados-membros da UE gastam três vezes mais em Defesa do que a Rússia, mas gastam mal) e a China está mais interessada na hegemonia regional, por isso não constitui uma ameaça para nós na Europa.

De onde pode vir então o perigo?

Provavelmente dos EUA, uma potência em declínio.

Vê Donald Trump e o seu estilo heterodoxo como uma ameaça à paz?

O estilo é certamente desconcertante, mas lembre-se de que ele também tem de responder perante a sua base de eleitores, que quer uns Estados Unidos fortes em termos de Defesa mas que não está ansiosa por ver essa força a ser usada… Trump sabe o preço de tudo e o valor de nada – esse é provavelmente o seu maior defeito de caráter.

Winston Churchill escreveu que foi o derrube das monarquias dos Habsburgos e dos Hohenzollern que abriu caminho a Hitler para ‘rastejar da sua sarjeta até ao trono’. Acha que o derrube de ditadores como Saddam, Kadhafi e Mubarak também pode ter aberto a porta para algo ainda pior que os seus regimes?

A realidade é que os frutos da Primavera Árabe foram modestos, e os novos governos são bastante sombrios.

Ouvimos dizer muitas vezes que hoje já não há grandes estadistas como o próprio Churchill, Roosevelt, Adenauer ou Mitterrand, só para citar alguns. O que aconteceu? A nossa época não é propícia ao aparecimento de grandes figuras?

Infelizmente assim é. Os nossos líderes não têm profundidade. Há demasiados apparatchiks [produtos do aparelho partidário].

Li há poucos dias que o aparecimento de génios é mais plausível fora da Europa e que o próximo Mozart, por exemplo, deverá nascer na Índia. A Europa está condenada à irrelevância no futuro próximo?

Com a atual liderança, que não tem capacidade para pensar estrategicamente, é muito possível que sim. Quanto aos génios, podem aparecer em qualquer sítio.

Se a Europa está condenada à irrelevância, o que dizer de Portugal, um país pequeno, periférico e sufocado por uma dívida gigantesca?

Visto de onde eu estou (Londres), Portugal parece um oásis de estabilidade. Conheço muitos britânicos que estão a pensar mudar-se para aí. Em relação à dívida não posso ajudar!

Daqui a cem anos, quando os historiadores do futuro estiverem a escrever a história deste período, quais são os acontecimentos do século XXI que não poderão ignorar?

A preponderância do imperialismo americano; a ascensão da China; é cedo para dizer se o nacional populismo está em ascensão, uma vez que as eleições têm produzido resultados contraditórios. Mas penso que as elites tradicionais deixarão de ter o monopólio do controlo dos acontecimentos. Isso também vale para a China, um estado autoritário populista onde os governantes têm muito medo do seu povo altamente volátil.