As Contas de Mário Centeno: realidade ou ficção?

As contas públicas estão consolidadas? Não. Porque lhes falta coerência, consistência, sustentabilidade e rigor. O rigor, isso mesmo. Mas Centeno não o paladino do rigor? Não! E porquê? Porque, desde 2015, foge como o diabo da cruz, de implementar a reforma das finanças públicas.

Pela primeira vez em democracia, o país registou, em 2019, um saldo orçamental positivo/superavit, antecipando a meta em 2 anos. É positivo? Sem dúvida. Mário Centeno teve mérito? Foi Ronaldo, mágico ou simplesmente um bom ministro? Estamos convencidos que foi, tão só, um bom ministro, que soube gerir, com firmeza, o crescimento da despesa (face à natural pressão dos ministros), colocar em vigor uma política cega e irracional de cativações, que agravou muito o problema do funcionamento dos serviços públicos, retirando-lhes qualidade, aumentou incessantemente a receita proveniente dos impostos indiretos e cortou desmesuradamente no investimento público, com maus resultados. Mas os grandes obreiros deste bom resultado orçamental foram os portugueses, “esmagados” com impostos diretos (IRS, graças ao brutal aumentos de impostos de Vítor Gaspar, em 2013) e nos últimos anos com um aumento brutal de impostos indiretos. Mário Centeno deve agradecer às empresas que criaram emprego (embora pouco qualificado) gerando mais receita no IRS e mais contribuições para a segurança social. O BCE e a sua política de juros, anormalmente baixos (para se redimir no fracasso na gestão das dívidas soberanas em 2009), foi decisivo, e de que maneira, no inédito superavit de 2019. E por fim, a política de dividendos do BP e da CGD ajudaram e bem na redução do défice. Mário Centeno foi Ronaldo, mágico ou super-homem? Muitos comentadores e analistas no espaço público, fazedores de mitos, querem fazer-nos crer que sim. Pessoalmente, considero que estão errados e/ou submissos, como estiveram quando se curvaram perante outros ídolos com pés de barro, como Salgado, Berardo, Bava, Isabel dos Santos, etc.

As contas públicas estão consolidadas? Não. Porque lhes falta coerência, consistência, sustentabilidade e rigor. O rigor, isso mesmo. Mas Centeno não o paladino do rigor? Não! E porquê? Porque, desde 2015, foge como o diabo da cruz, de implementar a reforma das finanças públicas, designadamente a Lei de Enquadramento Orçamental e o Sistema de Normalização Contabilística da AP. Sem esta reforma não temos certeza se o Estado está a gastar bem o dinheiro dos contribuintes, nem temos transparência no processo orçamental.

A gestão e controlo da despesa pública têm sido recorrentemente subalternizados na política orçamental. Ano após ano, o país real e o país político alheiam-se da execução do orçamento do ano anterior, ignorando o parecer do TC sobre a Conta Geral do Estado. E muitos ensinamentos podem e devem ser colhidos dessa análise produzida pelo Tribunal de Contas. O país vive obnubilado pelo“milagre”de Mário Centeno. A realidade virá, em breve, revelar-nos surpresas desagradáveis. Será que a gestão orçamental de Mário Centeno é, efetivamente, rigorosa e de qualidade? Respeita a lei e as boas práticas internacionais? Existem sérias dúvidas. Não basta um controlo rigoroso da despesa, cujo expoente foi a cega política de cativações, com custos enormes no funcionamento dos serviços públicos. Não basta uma política orçamental assente num crescimento incessante da receita fiscal, que conduziu à maior carga fiscal da história. Uma boa gestão orçamental pressuporia a aplicação da reforma das finanças públicas, lançada em Setembro de 2015, mas sucessivamente adiada pelo atual governo, como têm notado o Tribunal de Contas, em sucessivas auditorias à implementação da LEO e do SNC-AP, bem como o CFP e a OTAO. Uma reforma das finanças públicas é um garante de boa gestão pública, da transparência e de accountability no processo orçamental.

A nova LEO tinha o grande objetivo de melhorar substancialmente a qualidade da gestão financeira do Estado, do reporte e controlo e permitir a introdução de uma efetiva Orçamentação por Programas, isto é, uma orçamentação por performance e não meramente incremental.

A literatura económica é clara ao concluir que princípios e regras orçamentais têm um papel crítico no rigor, na transparência e na necessidade de proteção dos cidadãos contra os abusos e excessos financeiros do poder público. A subordinação das Finanças Públicas e do Orçamento de Estado, a estes princípios, visa uma gestão mais eficiente dos recursos públicos, mas também uma maior capacidade de controlo por parte dos órgãos de fiscalização, como a Assembleia da República.

Mário Centeno não avançou com esta revolução orçamental, em prol da transparência e a responsabilização pelos gastos públicos, apesar de já terem passado cerca de 4 anos desde o prazo (março de 2016) inicialmente imposto por lei da AR. E o papel dos partidos da oposição?

Não se viu. Uma boa gestão orçamental pressuporia a aplicação da reforma das finanças públicas. Terá Mário Centeno percebido que mais transparência iria criar-lhe um problema ao seu “sucesso orçamental”? Parece que sim. Não existe outra forma de o dizer. A realidade virá revelar que a gestão orçamental dos últimos anos não foi rigorosa, nem de qualidade, nem respeitou as melhores práticas internacionais.

Só quando for implementada a reforma das finanças públicas, os cidadãos vão poder finalmente saber o verdadeiro custo-benefício de cada medida do governo, avaliar o verdadeiro desempenho de cada serviço público e, sobretudo, tomar consciência da verdadeira situação patrimonial do Estado. Há estudos que demonstram que a implementação deste tipo de reformas tem um efeito positivo na prevenção da corrupção, fenómeno com expressão muito grave em Portugal, mas que continua a ser secundarizada e esquecida no discurso e, sobretudo, na prática política.

Muitos sabem que o “milagre orçamental” é conjuntural e pouco sólido mas ninguém se atreve a dizê-lo, por cobardia e submissão, tão à portuguesa. Só quando começarem a “sair do armário” alguns “esqueletos”, a que nos referiremos em próxima reflexão sobre a gestão orçamental em Portugal, muitos mostrarão a sua coragem.

Assim, a gestão e controlo da despesa pública continuam a ser o parente pobre da política orçamental em Portugal. Tudo indica que Mário Centeno falhou notoriamente, prejudicando o interesse público, a transparência e a gestão pública sustentável e responsável.

Coragem é ter razão antes do tempo! Não é vir “atirar pedras” quando a realidade se impõe aos olhos de todos.

António Lourenço 
Economista