A Assembleia da República é um órgão legislativo, que tem por função fazer leis ou aprovar propostas de lei do Governo.
Acontece que, no caso da eutanásia, não se tratava de legislar sobre uma realidade existente: tratava-se de levar a cabo uma alteração civilizacional, tratava-se de introduzir uma modificação num princípio aceite durante séculos, para o qual a vida humana era um valor absoluto.
E, para isso, julgo que a Assembleia da República não tinha legitimidade.
O caminho para a subversão de um princípio relativo à vida e à morte não podia ser a simples aprovação de uma lei no Parlamento.
Tinha, forçosamente, de ser mais amplo, mais complexo e ir mais fundo.
Em primeiro lugar, deveria ter havido um muito amplo debate nacional, ouvindo as instituições diretamente implicadas no problema, como a Ordem dos Médicos ou o Conselho de Ética, de modo a considerar todas as suas facetas e levá-las à compreensão de toda a gente.
Em segundo lugar, haveria que fazer uma consulta ao país, ou seja, um referendo, colocando aos cidadãos uma pergunta do género: «Aceita que, em certas circunstâncias a definir, a vida possa ser abreviada (ou a morte possa ser precipitada) medicamente?».
Em terceiro lugar, se o resultado da consulta fosse positivo, então, sim: a Assembleia da República seria ‘convidada’ a legislar sobre o tema.
Ou seja: aceite o ‘princípio’ pela maioria do país, os deputados assumiriam o encargo de fazer a lei que o regulasse.
É preciso ver que há uma diferença radical entre a ‘aceitação’ da eutanásia e a ‘legislação’ sobre ela.
Uma coisa é manter a porta fechada à abreviação da vida; outra é entreabri-la, definindo as circunstâncias em que pode ser feita e como deve ser feita.
A partir do momento em que se abre a porta, a legislação é uma questão secundária – porque hoje é uma e amanhã será outra.
A grande diferença, portanto, é entre manter a porta fechada ou aceitar abri-la.
E por isso, uma coisa deveria ser separada da outra.
A mudança do ‘princípio’ deveria ser objeto de uma consulta ao país; a sua ‘regulação’ caberia aos deputados.
Penso que isto é claro e não oferece grandes dúvidas.
Mas os partidos decidiram pôr o carro à frente dos bois: e, sem um grande debate, sem qualquer consulta ao país, sem – inclusive – incluírem o tema nos seus programas eleitorais, decidiram aprovar a eutanásia de afogadilho e dar-lhe forma legal.
Se isto não foi agir nas costas dos cidadãos, não sei o que o será.
E esta atitude só é explicável por razões políticas – ou seja, no âmbito de um acordo entre o PS e o BE para a aprovação do Orçamento do Estado; não há outra explicação para a urgência que envolveu este processo.
Depois de a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, o Conselho de Ética, as confissões religiosas existentes em Portugal se pronunciarem contra a eutanásia, o mínimo que se exigiria aos partidos – designadamente ao partido do Governo – era um pouco de humildade para ponderar os argumentos aduzidos e não partir logo para a aprovação da lei.
Mas não: ignorou tudo e todos e forçou a votação do diploma.
Mas se a urgência do PS e do BE se percebe no âmbito do referido acordo político, já a colaboração do PSD nesta farsa é difícil de perceber.
Rui Rio explicou-a com a sua posição de sempre a favor da eutanásia.
Mas a posição de Rui Rio aqui não interessava nada.
Perante a delicadeza do que estava em causa, Rio só tinha de dizer: embora eu pessoalmente defenda a eutanásia, não aceito que ela seja aprovada sem um amplo debate público, sem respeitar a opinião dos médicos, dos enfermeiros, do Conselho de Ética, das confissões religiosas, sem ouvir a opinião dos portugueses…
E dito isto, recusaria a aprovação do diploma; qualquer diploma.
Isto era o mínimo que Rio poderia ter feito. Se nem consegue contrariar arranjos políticos entre o PS e o BE, tendo ainda por cima como moeda de troca questões tão importantes como as ligadas à vida e à morte, para que serve Rui Rio?
Repito: não estava em causa a sua opinião: estava em causa uma maneira correta (ou incorreta) de fazer as coisas.
E vou mais longe.
Caso os líderes dos partidos não tivessem a necessária consciência sobre a importância do passo que estavam a dar, muitos deputados – os mais esclarecidos e responsáveis – deveriam ter-se recusado a votar os diplomas, considerando até que a questão não figurava nos programas eleitorais com que os seus partidos se tinham apresentado às eleições.
Resta agora Marcelo Rebelo de Sousa para pôr alguma ordem nesta questão.
E também aqui não está em causa a opinião de Marcelo sobre a eutanásia: está o modo como tudo isto foi feito, com muito pouca transparência.
Ou seja: o problema não foi o resultado mas o modus faciendi.
Perante isto, o Presidente terá o dever de vetar o diploma, alertando o Parlamento para a transcendência desta questão e para o modo ligeiro (ou apressado) como foi abordado.
Claro que a Assembleia pode sempre reconfirmar a votação – mas, nesse caso, fá-lo-á contra o Presidente da República e assumindo uma responsabilidade acrescida pela decisão.
Além de que um veto presidencial proporcionará sempre o amplo debate nacional que não houve – e colocará o Presidente fora do aparente negócio político que esteve por detrás de tudo isto.
Quanto ao Tribunal Constitucional, não percebo como poderá deixar passar uma lei como esta.
Se o TC chumba medidas de cá-rá-cá-cá, poderá aprovar uma alteração qualitativa numa questão que diz respeito ao mais fundo da natureza humana?
Se chumba medidas relacionadas com vencimentos, poderá aprovar uma lei que altera a relação dos seres humanos com a morte?
Poderá uma questão tão decisiva estar fora do âmbito da Constituição?