Os arrufos e os recados de um interrogatório que até deu mais gosto a José Sócrates

Ex-primeiro-ministro negou ter beneficiado o Grupo Lena, disse que procurador é mesquinho e que o juiz é atencioso. E ironizou com a “extraordinária Justiça portuguesa” num dia em que o gosto de falar foi “maior” por estarem jornalistas na sala.

Os arrufos e os recados de um interrogatório que até deu mais gosto a José Sócrates

José Sócrates chegou hoje ao Campus da Justiça com as suas agendas do periodo em que foi primeiro-ministro, garantiu que o primo só lhe pagou umas férias no Algarve (e não as três descritas na acusação), recusou qualquer intervenção no processo de adjudicação da construção do TGV ao consórcio de que fazia parte o Grupo Lena e voltou a negar qualquer lobby junto de governos de países como a Venezuela, a Argélia e Angola. Foi uma sessão cheia de recados e com momentos de algum humor.

Assim que começou a ser interrogado pelo juiz Ivo Rosa, José Sócrates começou a disparar avisos. O primeiro foi para os jornalistas presentes na sala: “Na presença da comunicação social o gosto [de falar] ainda é maior, se não o que sairía  amanhã seria uma edição das minha declarações”. Antes do início do debate instrutório, o ex-primeiro-ministro esteve mais de duas horas a responder a dúvidas que ainda tinham restado após as seis sessões de interrogatório anteriores.

 

 As dúvidas sobre as férias

 

Ivo Rosa começou por questionar José Sócrates sobre alguns detalhes relativos às férias que segundo a acusação o ex-primeiro-ministro passou no Algarve com o seu primo José Paulo Pinto de Sousa.

Segundo Sócrates, ao contrário do que é afirmado pelo MP, só passou uma vez férias com o primo no hotel Pine Cliffs. Quanto ao periodo entre 13 e 17 de abril de 2006, Sócrates afirma que seria impossível porque foi passar esses dias, época de Páscoa, com o pai a Vilar de Maçada. Quanto ao periodo entre 29 de abril a 2 de maio, socorreu-se de noticias que davam conta da sua prença na qualidade de primeiro-minsitro em Bragança e na Covilhã.

“Dos três periodos que a acusação diz que foram pagos pelo meu primo, dois posso negar”, disse Sócrates, que manteve sempre uma atitude hostil para com os procuradores Rosário Teixeira e Vítor Pinto: “A minha pergunta é: que credibilidade tem uma acusação destas? Bastaria ir ao Google!”

A postura de afronta foi por diversas vezes travada pelo juiz Ivo Rosa: “O senhor defende-se não é comentando a acusação…”

Por entre esta troca de palavras, o ex-governante disse ainda desconhecer a realidade financeira e os negócios do primo, apesar de reconhecer serem muito próximos, acrescentando que nem sequer sabia que este tinha contas na Suíça ou conhecia Francisco Canas, também conhecido por Zé das Medalhas.

 

TGV, a obra em que se ganhava sempre

Depois das viagens, Sócrates foi questionado sobre a sua alegada intervenção na adjudicação da linha Poceirão-Caia ao consórcio Elos, de que fazia parte o Grupo Lena de Carlos Santos Silva. O ex-primeiro-ministro garantiu que tudo foi tratado entre o ministro das Finanças e o das Obras Públicas, defendendo que não tivera qualquer intervenção. Nem mesmo na inclusão de uma clausula que permitiria ao consórcio ser indemnizado se a obra não avançasse. Recorde-se que segundo o contrato para a construção da linha de alta velocidade, caso a obra não viesse a avançar, as empresas do consórcio a que fora adjudicada obteriam uma elevada vantagem financeira, mercê de uma pesada cláusula de indemnização.

A concessão ao Elos dizia respeito ao troço de comboio entre Poceirão e Caia, adjudicado por 1,7 mil milhões de euros. Com a suspensão do projeto, pelo governo de Passos Coelho (de acordo com o memorando da troika), as empresas concorrentes exigiram uma indemnização de 169 milhões, argumentando a necessidade de serem ressarcidas pelos custos suportados relativos à preparação do projeto – um valor superior aos 120 milhões de euros que o Tribunal de Contas disse terem sido gastos nesta fase.

Em fevereiro de 2014 foi constituído o tribunal arbitral para a avaliação daquele pedido de indemnização, “na sequência da recusa de visto pelo Tribunal de Contas aos contratos relacionados com as infraestruturas ferroviárias no troço Poceirão-Caia e da Estação de Évora”. Conclusão: o Elos acabou mesmo por ganhar o direito a uma indemnização do Estado de 150 milhões de euros.

Nesta parte, Sócrates disse nada saber, alegando mesmo que não teve conhecimento do relatório final da adjudicação e que nem era hábito ser informado sobre o decurso das adjudicações.

“Mas este não era um relatório normal…”, salientou o juiz, ao que Sócrates voltou a insistir que os ministros é que tomavam as decisões.

 

A extraordinária justiça portuguesa

Para responder se naquela altura havia tido alguma conversa com Carlos Santos Silva, Sócrates pediu para se socorrer da sua agenda, ao que Ivo Rosa reagiu com alguma estupefação: “Certamente não punha as conversas que tinha na agenda…”

O ex-primeiro-ministro justificou que era a única ferramenta que tinha: “A extraordinária justiça portuguesa pede às pessoas para se lembrarem o que faziam há 11 anos”.

Ainda assim, depois José Sócrates acabou por responder. “Nunca falei com Carlos Santos Silva sobre o TGV, em segundo lugar também o jurista do governo que acompanhou o caso também disse que não recebeu orientações para satisfazer ordens políticas. Quem assistiu a estas sessões sabe que ninguém recebeu. O que fizeram foi no exercício da sua independência técnica”, adiantou, ouvindo uma nova rebocada do magistrado: “Isso depois é o tribunal a decidir.”

“Quando me falaram do consórcio dizia-se que era o da Brisa, não sabia que sabia que a Lena fazia parte”, disse ainda Sócrates.

Frisando que a clausula de indemnização não era ilegal, o ex-governante salientou que o diploma foi proposto pelo ministério das Obras Públicas e enviado para a secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, que fez uma analise e o levou a conselho de ministros: “O que o MP disse, que não foi analisado esse diploma, é mentira”.

 

"Era assim a diplomacia de Angola…"

O tribunal pediu ao Ministério dos Negócios Estrangeiros todas as visitas oficiais de Sócrates à Venezuela, Angola e Argélia para perceber o quadro em que se desenrolam os factos que o MP dizem ser tráfico de influências e lobby.

“Angola sempre foi uma prioridade na politica externa portuguesa, a minha primeira visita [4 a 7 de abril de 2006] foi feita com cuidado, porque era feita por um primeiro-ministro que não conhecia politicos angolanos. Até essa data ainda não tinha tido contactos. Isto é, fui ministro do ambiente e o máximo que fiz foi falar com a ministra do ambiente de Angola. Mas não conhecia ninguém importante, em síntese. Fui para lá justamente com esse objetivo”, começou por explicar Sócrates ao juiz Ivo Rosa, que elencou outras duas visitas oficias, uma em junho de 2008 e outra em julho de 2010.

E sobre um alegado pedido feito ao então vice-poresidente de Angola, Manuel Vicente, para receber umas pessoas amigas, Sócrates negou que se tratasse de qualquer favorecimento, esclarecendo como se processavam os constactos de Lisboa com Luanda naquela data: “O sr Manuel Vicente procurou-me para trazer recados do sr. Presidente. Era assim a diplomacia de Angola. Pela minha parte quando queria falar com o senhor presidente, ligava para o gabinete dele. Também só aconteceu duas ou três vezes”.

 

Argélia, um símbolo para a Esquerd

 

Sobre as ligações à Argélia começou por lembrar a amizade entre o então presidente Jorge Sampaio e o sem congérnere argelino Bouteflika: “A Argélia é um simbolo para a Esquerda. Jorge Sampaio conhecia a história francesa. E quem gosta da política francesa sabe da importância da Argélia”. Admiração que Sócrates confirmou partilhar.

“Fiz uma diplomacia económica ativa, mas nunca tive uma relação especial com o governo argelino como deriva da acusação do MP”, afirmou, dizendo que uma das viagens oficiais agora elencadas pelo MNE ao tribunal não passa de umas férias a convite do presidente argelino no deserto do país.

 

Venezuela e o pedido de atenção

Dizendo que muitas vezes só conhecia a comitiva quando estava nas viagens oficiais, Sócrates garantiu que nunca beneficiou o Grupo Lena através de contactos com a Venezuela. O ex-primeiro-ministro defendeu que quem convidou a empresa do amigo foras o ministro das obras públicas do seu governo e que nem nunca tinha ouvido falar na questão da habitação social até chegar à Venezuela e ouvir que o Lena tinha essa oportunidade.

“Não sei se prestou atenção, sei que é muito atencioso e regista tudo o que lhe dizem, eu tenho nas minhas notas do meu gabinete, não referem casas nenhumas. Só soube na visita”, sublinhou.

Ainda assim não soube explicar qual o porquê de numa visita de Chavez a Portugal, em julho de 2008, ter sido oferecido por este a membros do governo um jantar no Solar dos Presuntos, no qual também estava Joaquim Barroca, ex-administrador do Grupo Lena.

O ex-primeiro-ministro desvalorizou ainda as trocas de emails entre o seu assessor Vítor Escária e o assessor de Chavez Temir Porras, no qual eram feitas pressões no sentido de acautelar os interesses do Grupo Lena: “Para mim nem exisita a coisa da Lena, na altura não conhecia este Temir Porras”

 

Freeport e os ataques às suas campanhas

O MP considera que as notícias sobre o Freeport, em 2007, terão sido o motivo pelo qual uma offshore que teria como beneficiário Sócrates e que estava em nome de João Paulo Pinto de Sousa passasse para o nome de Joaquim Barroca. Tal como terá sido o motivo, segundo a acusação, poara que deixasse de usar as contas do primo e passasse a usar as de Carlos Santos Silva.

Sócrrates negou e disse que nessa altura não surgiram notícias sobre o caso, apenas em 2005 e 2009 por razões políticas, porque estava em campanha.

 

Sócrates diz que procurador é mesquinho

Quando chegou à vez do procurador Rosário Teixeira colocar algumas questões é que o clima ficou mais tenso. Nomeadamente quando este perguntou se o ex-primeiro-minitro tinha conhecimento de que a amiga Sandra Santos estava no Algarve em agosto de 2006.

“É preciso ser muito mesquinho para fazer essa pergunta… Baixa-se a um nível”, respondeu José Sócrates.

Quando o juiz se preparava para terminar o interrogatório e dar início ao debate instrutório Sócrates disse que não iria ficar na sala: “Não direi as razões para não ofender o Ministério Público”.

Mas assim que o juiz disse que ainda não era a vez de os procuradores falare, Sócrates reconsiderou e ficou na sala, sentado nos bancos da assistência.

Os recados do juíz

Os recados de hoje não vieram apenas do lado do arguido, também o juiz Ivo Rosa começou por deixar claro perante jornalistas de vários órgãos de comunicação social que a instrução da operação Marquês lhe foi parar às mãos no decurso de uma distribuição eletrónica, feita à primeira e não à terceira como noticiado, justificando que os vários erros presenciados à data pelos jornalistas se deveram a dificuldades de transferência do processo da pasta em que estava para o programa que faz a distribuição

Recorde-se que no debate instrutório que na prática só começará amanhã, serão analisadas questões como a possível violação do principio do juiz natural, a distribuição manual ao juiz Carlos Alexandre em 2014, a possível nulidade dos atos praticados após isso e a competência da Justiça portuguesa para investigar crimes já amnistiados pelas autoridades angolanas. Isto, além de outras questões de facto.

À entrada no tribunal, José Sócrates já havia criticado a distribuição manual da operação Marquês em 2014, comparando o caso, que já foi explicado pelo Conselho Superior da Magistratura, às irregularidades detetadas recentemente na Relação de Lisboa.

Na sala de audiências do Campo da Justiça estiveram perto de uma dezena de agentes da PSP.

 

As fotografias publicadas neste artigo foram capturadas pelo fotógrafo António Cotrim, da agência Lusa.