Outras vidas

A história desta mulher é a prova de que na sociedade em que vivemos nem tudo é mau, como nos querem fazer crer

Não foi há muito tempo que esta história se passou. Num vulgar dia de trabalho no meu centro de saúde, uma mulher na casa dos cinquenta anos veio à minha consulta no contexto de doença aguda.

Apesar de não estar agendada para esse dia, fez questão de ser atendida, informando as funcionárias administrativas de que o seu caso era urgente. Transmitida a informação, aceitei a sua inscrição como supra numerária, como aliás acontece em idênticas situações.

Chegada a sua vez, entrou no meu gabinete queixando-se de tosse e muita expetoração, dores no peito e cansaço acentuado, tudo provocado pelos acessos constantes de tosse, que não a largava desde há quase duas semanas.

Através da história clínica, procurei investigar as causas daquela severa infeção respiratória, acreditando, à partida, ser ‘fruto do tempo’ e das mudanças bruscas de temperatura, normais para a época do ano. «Apanhou muito frio, não foi?», perguntei eu, por descargo de consciência, ao que ela respondeu: «É verdade, apanhei muito frio». «E não sabe que nestas alturas do ano deve proteger-se bem do frio?», adiantei, não imaginando o que a senhora me iria dizer. «Faço parte de uma organização cuja finalidade é cuidar dos sem-abrigo. Dou um pouco do meu tempo para ajudar os outros meus colegas nesse trabalho. E como estive de serviço a noite inteira no meu dia de escala, apanhei imenso frio» – contou a doente.

Ao ouvir estas palavras, fiquei em silêncio, sem saber como reagir. Enchi-me de coragem, respirei fundo e disse-lhe: «É uma mulher de muito valor. Aprecio o seu exemplo. Deus a recompensará».

Mediquei-a e continuámos a conversa acerca do seu trabalho solidário na organização onde já trabalha gratuitamente há vários anos como voluntária. Que exemplo, o desta mulher! São estes casos que efetivamente mostram que há outras vidas. Vidas riquíssimas, cheias de conteúdo e de grande coração, daquelas que vale a pena serem vividas, que vão deixando marcas pela mensagem que transmitem. Ao invés, temos também vidas vazias, sem chama, mal vividas, ‘inúteis’ até. E, como dizia Goethe, «toda a vida inútil é uma morte antecipada».

Este caso não é único, graças a Deus. Há muita gente anónima que dedica um pouco do seu tempo a ajudar os outros e a cuidar dos que mais precisam. Curiosamente, fazem-no fora dos holofotes da sociedade, num procedimento discreto, sem dar nas vistas, e pouco ou nada se sabe acerca desse trabalho e de quem o fez.

Mas, se escolhi este caso para divulgação junto dos leitores, não foi só para realçar o gesto solidário e sublinhar o exemplo e o valor desta mulher. Mais do que isso, foi para chamar a atenção a todos de que os problemas da sociedade não são só de alguns, ou do âmbito de algumas instituições. São de todos nós, dizem respeito a cada um e temos de ser nós a combatê-los. É um erro clamoroso apontar o dedo só ao Estado, às autarquias, às instituições, culpabilizando-as pelas falhas que vamos encontrando aqui e ali – ficando nós sempre de fora, fazendo o papel de juízes impiedosos a ditarem sentenças de condenação. Criticar é fácil, fazer é difícil: custa por vezes muito, tem riscos e tem um preço.

Neste contexto, concretamente no meu ramo, é frequente encontrar pessoas a exigirem ao Estado comparticipação em todas as despesas que fazem, desde as mais vultuosas, no caso de certos tratamentos – o que até se compreende –, até aos gastos mais supérfluos de higiene pessoal, totalmente descabidos e até ridículos.

Ninguém se conforma com o ter de contribuir minimamente para as despesas que faz, e até o pagamento da mais baixa taxa moderadora é logo posto em causa. Ter de pagar o que quer que seja não é connosco; e então sair um pouco da nossa comodidade, do nosso conforto, do nosso bem-estar para ir ao encontro de quem está mais necessitado e à espera da nossa ajuda, é coisa que deixamos para os outros ou para as instituições fazerem.

A história desta mulher, que se libertou da ‘lei da vulgaridade’ a ponto de ter arranjado uma doença por ajudar os outros, é um exemplo que me apraz registar. É a prova de que na sociedade em que vivemos nem tudo é mau, como nos querem fazer crer.

Há muita coisa boa escondida em estilos de vida diferentes – a contrastar com as vidas vazias e sem conteúdo que nos impingem diariamente. Por isso, naquele dia, naquela hora, naquele momento, pude comprovar, com agrado, que ainda há… outras vidas!