Tânia Laranjo: “Atrás de um computador todos são corajosos”

Entrou numa redação pela primeira vez aos 21 anos e apesar da incerteza, foi ali que decidiu que queria fazer jornalismo de investigação. Sabe que é incómoda mas defende que o seu dever é informar.

O que é para si o jornalismo de investigação?

Acho que o jornalismo de investigação é uma das partes mais nobres do jornalismo. É investigarmos, é contarmos às pessoas o que muitas vezes muitas outras pessoas não querem que se conte mas é, no fundo, fazer o trabalho do jornalismo. O jornalismo de investigação pode ser quase tudo. Até uma pequena história pode ser jornalismo de investigação. O jornalismo de investigação não é o jornalismo de guerra, não é o jornalismo necessariamente da grande reportagem. Tudo onde o jornalista se empenhe, investigue e revele, cumprindo naturalmente todas as regras, é jornalismo de investigação.

Lembra-se qual foi a sua primeira investigação?

Foram várias. Lembro-me de algumas ainda no Jornal de Notícias, no Porto, onde comecei. Por exemplo, o processo Apito Dourado: Já não estava no início de profissão mas ainda tinha poucos anos de jornalismo. Foi um dos processos onde investiguei mais, onde revelámos muitas coisas. Era um processo muito novo no futebol. O processo Apito Dourado foi o primeiro onde se investigaram atos de corrupção no fenómeno desportivo. Hoje já é mais ou menos banal mas à data não era. 

Quando percebeu que queria fazer jornalismo de investigação?

Sou jornalista um pouco por acaso porque não queria entrar para jornalismo. Entrei por acaso e acabei por ficar. Acho que decidi logo no primeiro dia em que pisei uma redação – na altura no Jornal de Notícias, para estagiar. Tinha 21 anos – e percebi que era aquilo que queria: contar as histórias das pessoas e contar as coisas para as quais as pessoas não têm mecanismos. Nós temos os privilégios de poder contar, investigar, relatar, denunciar, colocar o sistema a funcionar. Somos, efetivamente, um poder e devemos usá-lo sempre tendo consciência dessa importância. O jornalismo da internet não existe e o jornalismo do Google não é jornalismo, é outra coisa qualquer.

Ganhou muitos inimigos?

Ganhei, claro que sim. Mas é inevitável. Não podemos trabalhar para amigos no jornalismo. É naturalmente inevitável ganharmos inimigos que se vão alterando porque um dia, quando precisam de denunciar outros inimigos, passam a ser nossos amigos.

Recebe ameaças?

Recebo, mas acredito no sistema judicial. Quando as situações são mais graves apresento queixa e ainda não tive nenhum incidente físico. Aprendemos a lidar com elas. A era das redes sociais facilita as ameaças até porque atrás de um computador todos são corajosos. O sistema judicial funciona e, por isso, sempre que sou maltratada nos serviços, apresento queixa. Não temos de ser insultados, não temos de ser ameaçados, o sistema tem de funcionar e as pessoas têm de nos respeitar.

Quantos processos teve?

Faço uma área muito sensível, designadamente violação de segredo de Justiça. Tenho dezenas de processos. Nunca fui condenada por violação de segredo de Justiça mas já me sentei no banco dos réus mais de uma dezena de vezes. Além da violação de segredo de Justiça temos agora outros processos novos que são os de desobediência. São processos que ainda se estão a discutir em sede de Tribunal Europeu. Estou convencida que vamos ganhar porque o interesse público se sobrepõe ao dever de obediência e falo, por exemplo, no processo Face Oculta, no processo Vistos Gold ou agora no processo Marquês. As pessoas têm o direito de saber, de conhecer os processos e de escrutiná-los ao pormenor. Mais do que o direito de escrevermos é a obrigação de contarmos ao leitor ou ao espetador – porque eu faço as duas plataformas – o que se sabe, o que foi investigado. 

Lida com os processos de forma natural.

Claro que sim. Obviamente que estas pessoas utilizam a perseguição judicial como desgaste. Mas faz parte. O que sinto nos tribunais é que os juízes e os procuradores ou magistrados, quer judiciais quer do Ministério Público, não conhecem minimamente as regras do jornalismo, o que muitas vezes pode levar até a condenações de jornalistas ou pelo menos a complicações em termos de moras nos processos judiciais. 

Nunca foi proibida de escrever alguma coisa?

Não, nunca. Em nenhum dos grupos onde trabalhei nunca ninguém me proibiu de escrever o que quer que fosse.

Há alguma história que tenha marcado a sua carreira?

São várias. Há dois tipos de processos. O processo Sócrates, por exemplo, marcou-me não só a mim mas a uma vasta equipa aqui. Foi marcante porque estivemos alguns anos a pregar quase sozinhos no deserto. Nós e o SOL. Os primeiros anos foram difíceis, a investigação da vida em Paris… O tempo de Sócrates não volta atrás porque efetivamente a pressão era muita. Nunca senti nenhum acionista nem por via da direção, dizer que não escrevêssemos isto ou aquilo. Mas foram períodos muito complicados. Nós sentíamos a pressão até porque podia haver um estrangulamento através da banca. É preciso não esquecer que nós vivíamos no período de Sócrates mas também era o período de Ricardo Salgado que era o dono disto tudo e era o dono da banca. Depois há outros tipos de casos. Gosto muito de fazer as chamadas histórias do dia. Há reportagens que me marcam muito, histórias de pessoas, dramas, a vida das pessoas, a forma como elas precisam desesperadamente de nós, de alguém que as oiça… como não chegam às coisas mais simples dos organismos públicos, como ninguém lhes dá respostas, como nós podemos, às vezes, numa notícia de cinco linhas, resolver um problema grave na vida de uma pessoa. Isso acaba por ser muito gratificante.

A investigação hoje pode ignorar o trabalho dos hackers, como é o caso do Rui Pinto?

Temos, para o bem e para o mal, vantagens e desvantagens. Se por um lado não podemos, por exemplo, fazer escutas telefónicas e a Polícia pode desde que seja autorizada pela Justiça, nós podemos partir – e a Polícia não pode – de um documento roubado – porque é isso que o hacker faz – para começar uma reportagem jornalística. Não há aqui nenhuma contaminação de processo porque isto não é um processo judicial. Para nós tem uma utilidade muito grande como aliás se tem visto. O que é expectável é que depois desse documento se faça toda uma investigação posterior. Agora, para o jornalismo – e tem sido desde o Futebol Leaks, agora o Luanda Leaks, todos estes escândalos que têm sido denunciados ao que tudo indica a partir de Rui Pinto, permitem perceber que nós podemos, efetivamente, começar investigações jornalísticas e ser um suporte muito importante se testarmos a veracidade dos documentos, se atestarmos que a pessoa que está a revelar aqueles documentos não está a omitir alguns, não está a desvirtuar a verdade. Mas, para nós, é fundamental e todos esses documentos podem ser perfeitamente usados. Não estamos num processo judicial com as regras que a Justiça tem.

Como está o caso com o Pinto da Costa? A Comissão da Carteira de Jornalistas abriu um processo…

A comissão não me instaurou um processo. Pinto da Costa queixou-se à Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas que imediatamente instaurou um inquérito e que o arquivou. O processo crime corre os seus termos. Tenho um processo crime nessas circunstâncias, por roubo de um micro que está, aliás, em fase de julgamento. São acusadas três pessoas: o Fernando Madureira, a mulher e o autor do roubo do micro. Não apresentei queixa contra Pinto da Costa. O que se passou ali foi efetivamente um empurrão mas não me parece que aquilo configure crime. A queixa na Comissão da Carteira foi naturalmente arquivada porque, de facto, foi aquilo. Nos últimos dois anos, sinto que toda a gente apresenta queixa na Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas. E a comissão tem uma coisa péssima – que me parece, aliás, discutível – que é abrir inquérito independentemente do que for. Exatamente porque depois acaba nessa pergunta, se foi aberto um processo contra mim. É sempre aberto um processo, aqui não há uma fase sequer preliminar. Há quase uma fase, uma nota de culpa, onde a Comissão da Carteira assume quase o labelo de quem apresenta queixa e onde nós temos de nos defender. Isto acaba por ser ainda mais constrangedor porque tem menos regras de direito do que os processos judiciais. Nos processos judiciais não há uma presunção de culpa. Na Comissão da Carteira há. Nos últimos meses tenho uma série de queixas na Comissão da Carteira. Para já têm sido todas sucessivamente arquivadas, espero que as que estão a correr também o sejam. Por exemplo nisto do futebol: apresentam queixa, põe a correr na net que o processo já foi instaurado porque o documento em si, diz instauração de processo e a partir daí isto vale como se o jornalista não tivesse cumprido as regras. O que não é necessariamente isso.

Pôs uma ação contra João Araújo por este ter dito que cheirava mal.

Também ganhei a ação. Já transitou e o João Araújo não me pagou. Foi condenado a pagar-me uma indemnização, já não estou certa, mas à volta de 10 mil euros. Ainda não pagou e naturalmente vamos para a execução dos bens.

Acha mesmo, como chegou a dizer, que foi mau para a sua imagem como jornalista?

Acho que manchou. Mas acho que mais do que manchar o objetivo era claro: intimidar. Voltamos ao tempo do Sócrates. Era intimidar, era fazer com que eu deixasse de fazer a cobertura do processo. João Araújo não gostava das minhas perguntas, eram incómodas e foi claramente para isso. É mais do que insultuoso. O insulto é uma coisa que posso gerir mais ou menos no plano pessoal. Ali não era um insulto, era mesmo uma forma de intimidação. Foi condenado em primeira instância, foi condenado em segunda instância, perdeu todos os recursos, a decisão transitou em julgado e espero que pague. Foi condenado numa pena de multa e ainda numa indemnização cível.

Este tipo de casos não muda a sua forma de fazer o seu trabalho?

Não muda e a partir daí percebi que é assim que se faz. Depois disso já apresentei várias queixas e já avancei, por exemplo no caso do micro que tem agora judicialmente um processo, tenho processos contra vários adeptos do Sporting que me insultaram e que me ameaçaram em vários momentos desta crise do Bruno de Carvalho. Ou seja, as coisas discutem-se nos tribunais. Não vale tudo, as pessoas não me podem intimidar se estou a trabalhar. 

Como reage à denúncia do diretor de comunicação do FC Porto, Francisco J. Marques, de que foi detida por conduzir sob efeito de álcool?

Isso é a minha vida pessoal e não falo. 

Em relação à compra da TVI pela Cofina. Não se sente ameaçada pela concorrência?

Não. A concorrência é a coisa mais saudável que nós temos. Tomara eu que haja muitos órgãos de comunicação social. O papel tem esse problema. Quando comecei éramos muitos jornais, vendíamos todos muito e agora, infelizmente, só nós Correio da Manhã, em termos diários é que ainda vendemos. E isso é que é mau. Ter concorrência acho que é a coisa mais saudável e melhor para o jornalismo, para o jornalista até em termos de qualificações profissionais, de salário e de tudo, é o mercado a funcionar.