O vírus europeu

Imagine-se que somos todos pessoas de bem. Europeus, civilizados, defensores de direitos, libertários de oprimidos, abertos à protecção dos que sofrem. Tenhamos consciência do que se passa relativamente perto de nós. Dos povos massacrados por guerras sem fim e mortes sem limite. Podemos rever-nos, mesmo, nas declarações compungidas e solidárias ou em acções concretas que…

Imagine-se que somos todos pessoas de bem.
Europeus, civilizados, defensores de direitos, libertários de oprimidos, abertos à protecção dos que sofrem.
Tenhamos consciência do que se passa relativamente perto de nós. Dos povos massacrados por guerras sem fim e mortes sem limite.
Podemos rever-nos, mesmo, nas declarações compungidas e solidárias ou em acções concretas que visam evitar os naufrágios no Mediterrâneo.
Satisfaz-nos o ego, engrandece-nos.
Somos o exemplo declarativo.
Porém…
Alguns anos atrás, a Alemanha aceitou receber um contingente elevado de deserdados da sorte. Foi exemplo.
Exactamente nessa altura celebrou com a Turquia um pacto estranho.

A Turquia recebia os demais demandantes e a Europa e a Alemanha pagavam para isso.
Foi o que se pode denominar de uma particular forma de ser bom, de fazer o bem.
E a Turquia recebeu no seu território milhares de migrantes em campos sem qualificação, fingindo atribuir aos refugiados um estatuto de acolhimento.
Nada dura sempre.
A mesma Turquia mudou. Passou a ver ser discutida a sua prática democrática, divergiu na intervenção militar no conflito sírio, afastou-se da Europa, dos Estados Unidos e da NATO.
E eis que decidiu fazer letra morta do acordo.
Se o destino pretendido dos migrantes é a Europa, dizem, que a Europa os receba.
E de um momento para o outro, milhares se confrontaram com a abertura das fronteiras da Turquia, com o fim da contenção paga.

Do outro lado está a Grécia e logo a seguir a Bulgária, dizem, que os recusam com violência.
Nada de mais errado.
Do outro lado está a Europa do faz de conta.
Será que somos todos, europeus, pessoas de bem.
Ao mesmo tempo, longe, na China uma ameaça de saúde pública nasceu.
Um vírus, uma epidemia, uma dor de cabeça monumental.
A China virou-se para dentro de si própria e desdobrou-se em iniciativas. Radicais, corajosas, duras.
O mundo aguardou que o mal chegasse até si.
Nuns casos quase de imediato com números impressivos e dramáticos.
Por esta Europa adentro, a Itália foi a principal porta de entrada.
Ninguém o antecipou.

Hoje, a mesma Itália espera que o número de cem mortes atingido conduza ao encerramento de escolas e universidades, depois de cortado o fluxo turístico para os principais destinos italianos.
A Europa, inimiga do pânico, trocou impressões.
Um a um, os países mais abertos vão sendo invadidos também.
Desaparecem as máscaras e as luvas e o gel desinfectante.
Ninguém tem medo, mente-se.
Os governos martelam os ouvidos com os números das disponibilidades, da prevenção, da resposta.
A realidade aproxima-se.
Dentro em breve, os contaminados ficarão em casa porque as respostas hospitalares estarão esgotadas.
E depois?
O grande plano que falta é nesse momento como monitorar, como acompanhar, como tratar e com que recursos humanos.

Chegará a hora da verdade.
Esperemos que não aconteça como no caso do aeroporto do Montijo.
Estava tudo a correr tão bem.
Uma solução contida nos custos, praticável, rápida.
Um pequeno pormenor escapou.
Um Governo inteligente exigiu em lei que todos estivessem de acordo.
Outro, durante cinco anos, assobiou para o lado.
Sim, somos portugueses.
Mas, para mal dos nossos pecados, também transportamos, na nossa condição de europeus, o vírus.