Habituemo-nos, porque o mundo mudou

Graça Freitas, escudo da ministra Temido, faz cada vez mais lembrar Constança Urbano de Sousa durante os trágicos incêndios de 2017.

Há 25 anos, nos últimos do século passado, quando o eurodeputado socialista António Campos lutava quase sozinho contra a doença das vacas loucas, alertando para os perigos para a saúde pública, o ministro da Agricultura Fernando Gomes da Silva, para descansar os produtores de carne bovina e os consumidores, chamou jornalistas para testemunharem o seu repasto de… mioleira de vaca.

Gomes da Silva era, na altura, do Governo socialista liderado por António Guterres e do qual também fazia parte António Vitorino, o mesmo que, anos mais tarde, haveria de voltar-se para os jornalistas – com o ar petulante que só recentemente perdeu quando o seu nome apareceu envolvido num escândalo de corrupção internacional – e exclamar a célebre expressão «habituem-se!». 

O país tinha mudado. O PS acabara de conquistar a sua primeira (e até hoje única) maioria absoluta, sob a liderança de José Sócrates, e António Vitorino rejubilava. E vem daí aquele «habituem-se!» do já então comentador.

Voltando a Fernando Gomes da Silva, deu este uma entrevista em 2010 – ao jornal Mirante – na qual, sorrindo, garantiria que «se fosse hoje [julho de 2010] voltaria a comer mioleira de vaca» em plena crise das vacas loucas.

De facto, António Campos ficou tempo demais a falar sozinho da encefalopatia espongiforme bovina.

Se fosse hoje, tudo teria sido muito diferente. Porque o país e o mundo mudaram radicalmente.

Se fosse hoje, ministro da Agricultura que comesse mioleira de carne bovina em plena crise de vacas loucas nem acabava a digestão sem receber a comunicação da sua exoneração.

Assim como, se fosse hoje, certamente António Vitorino não teria apresentado a demissão, como o fez naqueles idos anos 90, por se ter enganado no pagamento da SISA relativa à compra de um monte alentejano.

Nos dias que correm, e como pode ver-se pelos exemplos bem recentes, não há qualquer problema em termos um governante, no caso um secretário de Estado, que beneficie diretamente dos negócios de empresas estatais dependentes da sua tutela. Como parece não haver problema algum que gestores públicos alienem património do Estado por tuta e meia e não acautelem as mais valias de que possam vir a beneficiar os respetivos compradores no curto ou no médio prazo.

Enfim, nestes novos tempos que vivemos, grave e inaceitável é um ministro da Cultura postar nas redes sociais figurativa ameaça de assentar «um par de tabefes» num cronista ou crítico cultural. Isso, sim, é razão de perda imediata da confiança política do primeiro-ministro António Costa e razão objetiva de exoneração sem apelo nem agravo. E tem, portanto, toda a razão João Soares em vir dizer que foi o único governante exonerado por ter escrito quatro palavras no Facebook. 

De facto, está tudo virado do avesso.

Não fora assim, e em vez de choverem as críticas à senhora diretora-geral da Saúde que deu uma entrevista procurando esclarecer o público sobre a necessidade de não se entrar em alarmismos improdutivos e de, ao invés, procurar-se o máximo de informação e seguir-se as recomendações das autoridades competentes, ter-se-ia apontado antes o dedo ao jornal que, desvirtuando a mensagem da entrevistada, opta por manchete sensacionalista e objetivamente desrespeitosa tanto do emissor como dos destinatários.

Só que nos dias de hoje o politicamente correto impõe-se ao que é correto.

É verdade que estamos perante uma pandemia ou um surto viral à escala mundial. E, como cada vez mais vivemos numa aldeia global, com todos os riscos inerentes, é caso para parafrasear António Vitorino: ‘Habituemo-nos!’.

Mas não vale tudo.

Graça Freitas, feita escudo de Marta Temido, faz cada vez mais lembrar Constança Urbano de Sousa quando foi apanhada como ministra da Administração Interna nos trágicos incêndios de 2017.

E, neste caso do Covid-19, em Portugal, ainda a procissão vai no adro.

À medida que o tempo passa e os casos vão aumentando, a tranquilidade e a confiança das intervenções iniciais vão dando lugar à incapacidade de resposta e à impotência reveladas num cansaço impossível de disfarçar se chegarmos a situações de descontrolo.

António Costa – até porque a União Europeia a tanto também o obriga – sabe que todos os cuidados são poucos.

E também sabe que, desta vez e em matéria de saúde e da vida de pessoas, não pode contar com a ajuda incondicional de Marcelo Rebelo de Sousa.

Não pelo facto de Marcelo não resistir à sua hipocondria e refugiar-se em casa na primeira oportunidade (surgindo a falar aos jornalistas à distância inultrapassável da varanda do primeiro andar da sua residência em Cascais), mas porque o Presidente da República (assumiu-o após os trágicos incêndios de 2017) não voltará a tolerar nem mais uma falha do Estado na defesa da vida dos seus cidadãos. 

E António Costa e o seu Governo – nisso como no respaldo presidencial – estão muito mal habituados.