A vacina é ficar em casa

Linha SNS24 deixou de dar resposta ao aumento das solicitações, entre pessoas com dúvidas e sintomas que podem ser de qualquer infeção respiratória. A principal mensagem, agora, é a de que pessoas com sintomas ligeiros não devem ir para o hospital, apela o presidente do São João, no Porto. Há farmácias a recomendar às pessoas…

A vacina é ficar em casa

Tem de ser uma batalha em todas as esquinas. O apelo foi feito esta semana por Constantino Sakellarides, antecipando a crise que abalará país nas próximas semanas. E resume um estado de espírito que ainda não é geral. Subiu a preocupação, o alerta, as medidas, mas mantiveram-se mensagens contraditórias do Governo, a linha SNS24 – primeira linha de resposta – colapsou e ainda se viam ontem filas para supermercados e centros comerciais. E o fim de semana de bom tempo faz temer concentrações nas praias, com as autarquias da linha de Cascais prontas a intervir. 

Depois de desvalorizar a necessidade de medidas imediatas, a Europa acordou para a rápida propagação da Covid-19 com os relatos do  drama nos hospitais italianos onde os recursos não chegam e é preciso decidir quem se trata e quem se salva, por falta de ventiladores. Repete-se a tragédia de Hubei, que há um mês parecia distante e que custou a vida a mais de 3 mil pessoas. Entre os 80 mil doentes contaram-se mais de 3000 profissionais de saúde infetados e 13 morreram, o que a repetir-se na Europa teria um forte impacto na capacidade de resposta.

Parar o país já ou mais tarde?

Contra uma recomendação inicial do Conselho Nacional de Saúde Pública, o Governo avançou com o fecho das escolas e universidades, discotecas e o cancelamento de eventos de massas, depois do aviso do Centro Europeu de Controlo e Doenças de que uma crise como a italiana pode rebentar noutros países europeus no espaço de dias ou semanas. 

Há  apelos para que o Governo vá mais longe e feche todos os serviços que não sejam imprescindíveis, seguindo o modelo de resposta ao Covid-19 da China e de Macau. Médicos e universidades lideraram a pressão sobre António Costa, mandando os alunos para casa antes de surgirem os primeiros casos positivos – que têm vindo a suceder-se em várias escolas ao ponto de facilmente se conhecer alguém em isolamento profilático, pelo menos nas maiores cidades. 

E não gostaram dos recados de que deviam ter esperado pela decisão da autoridade de saúde. Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e que escreveu uma carta aberta a António Costa, defende que são necessárias medidas restritivas máximas para conter a epidemia. «Há 15 dias Itália estava como nós estamos hoje», disse ao i. «Quando vê alguém a afogar-se, não espera pelos bombeiros. Antecipámo-nos mas tivemos de fazer isto. Com 50 casos num dia conseguimos lidar, com 500 não. Temos de antecipar, não podemos pensar em apenas reagir. O alarme social existe quando há fogo e há. Está a reproduzir-se o que se passou em Itália. São medidas que não são simpáticas mas o Governo tem de assumir essa responsabilidade. Há uma relação direta entre restrições impostas e pessoas afetadas. Não podemos se calhar ser como a China, mas devemos fazer o máximo possível».

Ao SOL, o bastonário dos Médicos defende também que é preciso avançar para medidas mais fortes para conter ao máximo uma rápida evolução da epidemia e evitar uma situação de colapso dos serviços de saúde. E antecipar o aumento de casos nas próximas duas semanas, cancelando todos os procedimentos não urgentes, ativando hospitais militares e articulando resposta com o setor social e privado. «Vamos ter todos de ser setor público e isto tem de ser tudo afinado agora. Conter a infeção já vai ser difícil, era fazer isto há dez dias, quando tínhamos poucos doentes, como fez Macau. Seguimos o caminho de Itália, que foi o caminho da Europa, mas ainda dá para termos um meio caminho, sendo certo que a infeção já estará disseminada», diz. 

Pensar que só acontece aos outros é fatal

Até esta sexta-feira, o Governo não tomou novas medidas, assumindo, no entanto, que a situação pode evoluir a qualquer momento. No último balanço da DGS conhecido à hora de fecho, com dados até quinta-feira à meia-noite, havia 112 casos confirmados, estavam identificadas 11 cadeias de transmissão e havia 172 pessoas a aguardar resultados de análises. E mais de 5000 em vigilância ativa. Na passada sexta-feira eram 354 e o país tinha 13 casos confirmados.

O Governo e a Direção-Geral da Saúde pediram a toda a população que siga as medidas de prevenção e evite contactos sociais e espaços com muitas pessoas, cumprindo o isolamento social quando é decretada a ‘quarentena’ pelas autoridades de saúde, mas a mensagem pública até esta sexta-feira mantinha-se cheia de contradições, com o Ministério do Ambiente a lançar uma campanha de reciclagem de garrafas de plástico nos supermercados em plena crise sem qualquer referência à epidemia que o país enfrenta. A mobilização das autarquias e da sociedade civil, com  fecho de equipamentos municipais e parques infantis, pessoas a iniciarem  ‘quarentena’ por opção – um grupo no Facebook que pelava ao isolamento voluntário juntava ontem 270 mil pessoas – e muitas empresas a avançarem para o teletrabalho para mitigar até possíveis custos com desinfestações e isolamento forçado dos trabalhadores, pode ajudar a abrandar a progressão da epidemia, mas existe a perceção de que os efeitos não serão imediatos. «Não estivemos parados e, contudo, como todos os outros, tememos não estar preparados porque não depende só de nós», assumiu esta sexta-feira a ministra Marta Temido. 

Durante a tarde, a Organização Mundial de Saúde reconheceu que a Europa é agora o epicentro da pandemia. «Têm de tomar uma abordagem abrangente, não fazer apenas testes, não identificar apenas contactos, não fazer apenas distanciamento social, fazer tudo», apelou o diretor-geral da OMS. «Qualquer país que observe a experiência de outros países com epidemias maiores e pense que não acontece no seu está a cometer um erro fatal», avisou Tedros Adhanom. 

As novas recomendações do ECDC admitem não só o fecho preventivo das escolas, mas também cordões sanitários para vedar bairros onde se acumulem casos. Foi decretado o estado de alerta em Portugal e as forças de segurança e de proteção civil estão em prontidão caso seja necessário avançar para medidas mais drásticas de isolamento. Com o despacho que declara o estado de alerta, é agravada a pena para quem desobedeça ou resista às ordens das autoridades, sendo que o Código Penal prevê até dois anos de prisão, que neste contexto são agravados em um terço.

SNS24 falha, farmácias respondem

A forma como o serviço de saúde responderá ao aumento dos casos nos próximos dias é que suscita maior preocupação, sobretudo tendo em conta o historial nacional de elevado recurso às urgências, o que na atual epidemia pode funcionar como rastilho para a propagação do vírus. Mais de 40% das idas às urgências nos hospitais portugueses são de pessoas com quadros clínicos que não justificariam uma ida ao hospital, pelo que o comportamento da população e o aconselhamento pode ser determinante. E a porta de entrada tem estado a falhar. 

Depois de vários alertas sobre horas de espera na linha SNS24, a linha voltou ontem a colapsar.  Sem resposta a dúvidas, receios e sintomas, têm aumentado os pedidos de informação e aconselhamento nas farmácias. O plano de resposta nacional ao Covid-19 prevê apenas que se encaminhem as pessoas para o SNS24, o que motivou duras críticas do setor, que agora acaba por estar na linha da frente.

O Governo anunciou, entretanto, que foi possível chegar ao atendimento de 1200 chamadas em simultâneo e que vai ser aberto um call center no Algarve para chegar às 2000 chamadas, mas nos últimos dias ficaram milhares de chamadas por responder – o Ministério da Saúde deixou de publicar dados na segunda-feira, dia em que foram atendidas 10 900 chamadas e 42 mil ficaram por atender. A partir desta semana, além do reforço de atendimento, o Ministério da Saúde anunciou que as chamadas para o SNS24 passam também a ser gratuitas. Até aqui era cobrado o valor de uma chamada local por minuto, com as chamadas a chegar facilmente aos cinco euros ou mais. Mas a preocupação nos próximos dias é perceber se o atendimento vai melhorar, sendo previsível que aumentem também os pedidos. «Dizer para ligar para o SNS24 tem sido bater contra uma parede», disse ao SOL Luís Cunha, diretor técnico da farmácia Duque D’Ávila, no centro de Lisboa. Perante pessoas com sintomas de infeção respiratória, que  podem ser Covid-19, gripe ou qualquer outra infeção, a abordagem das farmácias tem sido recomendar paracetamol, controlo de temperatura e o isolamento em casa – e logo que possível o contacto para o SNS24. Assume-se que o vírus está a circular na comunidade, sobretudo depois de os hospitais terem alargado o despiste a doentes internados com pneumonias sem ligação a viagens ao estrangeiro  e terem sido confirmados vários casos em Lisboa e no Porto. 

Aos maiores grupos de risco, doentes crónicos e pessoas com mais de 60 anos, a recomendação das farmácias tem sido que fiquem em casa nos próximos dias. É a única vacina disponível. «Independentemente do grau de suspeita, a primeira obrigação dos profissionais das farmácias é transmitirem às pessoas uma mensagem de tranquilidade», apelou ontem a Associação Nacional das Farmácias, que adotou as orientações europeias. 

Só em caso de agravamento do estado clínico e emergência se deve recorrer aos hospitais. «A mensagem mais importante nesta fase é que as pessoas com sintomatologia ligeira devem ficar em casa e não vir ao hospital», defendeu ao SOL Fernando Araújo, presidente do Hospital de São João, que tem estado na linha da frente na resposta ao surto no norte do país, região até ao momento com maior número de casos.

Hospitais suspendem tudo 

Se 80% das pessoas infetadas com Covid-19 têm sintomas ligeiros ou são assintomáticas, até 20% poderão precisar de cuidados hospitalares e 10% de cuidados intensivos. Portugal tem 300 camas de cuidados intensivos  e cerca de 500 a 600 ventiladores, revelou na RTP o epidemiologista Filipe Froes, o que, num cenário como o que está a viver a Itália, causaria uma enorme pressão. Os hospitais têm estado a preparar-se para o pior cenário e a tentar comprar mais ventiladores, equipamentos de proteção e testes, mas há dificuldades em abastecer em toda a Europa. E só esta semana começou a ser agilizado o levantamento para perceber se há ventiladores disponíveis e que não estejam em uso.  Os apelos estão a ser feitos até a clínicas privadas. O Governo garantiu que a reserva nacional de material de proteção está a ser reforçada mas algumas unidades veem-se obrigadas agora a racionar o uso de máscaras e algumas já deram instruções para que sejam usadas mais de uma vez. «Devem ser guardadas dobradas a meio com a parte azul para fora e não tocar com os dedos na parte de dentro sem os desinfetar previamente», foi uma das orientações dadas aos profissionais.

O São João, no Porto, foi o primeiro a anunciar o cancelamento de consultas e cirurgias não urgentes. Ontem, o Santa Maria tomou a mesma medida, justificando a necessidade com o aumento de casos nas últimas 48 horas mas também com o forte impacto das medidas nacionais na disponibilidade de recursos humanos – um dos avisos do ECDC foi que o encerramento de escolas teria impacto na disponibilidade de médicos e enfermeiros, um balanço que ainda não foi feito pelo Ministério da Saúde e a que há que somar dezenas de profissionais de saúde que já estão em quarentena. A partir deste fim de semana, em Santa Maria serão feitas cirurgias imprescindíveis, nomeadamente oncológicas, e internamentos inadiáveis, revela uma circular normativa a que o SOL teve acesso, que estabelece também a suspensão da atividade de transplantação. As regras estão a causar apreensão entre os profissionais, pelas decisões que poderão implicar nas próximas semanas em relação a outros doentes.

Entretanto, todas as celebrações litúrgicas em igrejas católicas também foram canceladas.