A Justiça está doente…

A Saúde e a Justiça são dois pilares interligados, tendo em comum o facto de não obedecerem a remédios de ocasião e de partilharem um papel ativo na confiança dos portugueses. Daí a sua extrema importância. 

É em plena crise global, a termo incerto, provocada pelo coronavírus, que o diagnóstico da Justiça portuguesa se mostra alarmante, ao saber-se ‘contaminada’ por outro ‘vírus’ não menos perigoso – o do corporativismo, assente no amiguismo e numa teia de favores e de solidariedades de capela. Que desaguaram na prática de atos irregulares, tecendo uma malha de insondáveis interesses. 

Essa nuvem já não poupa sequer os tribunais superiores, criando um clima de suspeição que inquina o Estado de Direito. 

Se no campo da Saúde enfrentamos, há muito, uma situação precária no SNS, com graves descontinuidades na rede hospitalar pública – que nos fazem temer pela eficácia da resposta, num cenário de agudização do Covid-19 -, na Justiça sobram os sinais de perturbação sistémica, suscetíveis de abalar o edifício democrático. 

A Saúde e a Justiça são dois pilares interligados, tendo em comum o facto de não obedecerem a remédios de ocasião e de partilharem um papel ativo na confiança dos portugueses. Daí a sua extrema importância. 

Quando o presidente do Supremo Tribunal e do Conselho Superior da Magistratura compara um cenário caótico de obras com o estado da Justiça em Portugal – «[Ela] está como estas obras, […] parada e destruída. Ninguém acredita na Justiça» -, é porque chegámos a uma situação que não pode ser ignorada e muito menos subestimada. 

O juiz António Piçarra, quase a jubilar-se, não terá dito isto de ânimo leve. E fê-lo depois de instaurar inquéritos disciplinares a três colegas magistrados, por suspeita de irregularidades, entre os quais um ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa e o seu sucessor na cadeira, aconselhado também a renunciar ao cargo. 

Quando o mesmo presidente do Supremo confessa, em conferência de imprensa, que «nunca me passou pela cabeça que alguma vez sucedesse algo semelhante», confirma-se que há razões bastantes para que os ‘sinos toquem a rebate’. Se a Justiça está a abrir brechas – perante o ‘silêncio ensurdecedor’ da respetiva ministra, tão lesta noutras ocasiões -, é o próprio sistema que está a ser posto em causa.

Recorde-se que até o juiz Ivo Rosa, a quem coube a mediática Operação Marquês, se sentiu obrigado a explicar, na abertura do debate instrutório, que o ‘engasgamento’ do sorteio eletrónico que lhe atribuiu o processo foi um problema que se deveu «à capacidade de rede», negando qualquer manipulação. 

Mas é no mínimo desconcertante observar a forma como um ex-primeiro-ministro, acusado de uma impressionante lista de malfeitorias, tem feito o seu ‘show off’, destratando o Ministério Público, inspetores e juízes, como se fossem uma ‘agremiação de malfeitores’, empenhados em persegui-lo e a comprometerem o seu ‘radioso’ futuro político, onde antevia, até, uma candidatura a Belém. 

Por isso, toda a sua pressão mediática tem sido orientada no sentido de desvalorizar, desacreditar e, até, ridicularizar a acusação e o trabalho dos investigadores, numa tentativa de ‘ganhar na secretaria’ o que receia, talvez, perder em Tribunal. 

Sócrates nunca conseguiu explicar as singularidades deste processo, desde o gosto pela vida abastada à extrema generosidade de um amigo que lhe pagava as contas, ou às mirabolantes fortunas em família. Um mistério… 

De facto, os seus depoimentos têm oscilado entre a tese de que «nunca tive vida de luxo» – embora a exibisse – e a ‘pobreza franciscana’, frequentemente de mão estendida. 

Sócrates e Ricardo Salgado, protagonistas principais de uma extensa lista de suspeitos e de arguidos, representam um formidável teste à Justiça, entretanto embaraçada com sorteios e compadrios, que lançam um indesejável anátema sobre a magistratura.

Se a Saúde e a Justiça estão a braços com diferentes ‘vírus’, o Governo, ao fim de quatro meses de mandato, parece atrapalhado e errático nas prioridades. 

Num tempo dominado pela incerteza, não deixa de ser sintomático que o Presidente da República – antes do retiro em Cascais, em quarentena autoimposta -, tenha aproveitado o aniversário do Público para lançar, sibilino, uma farpa ao Governo, fazendo notar que «não se pode começar a legislatura com ambiente de fim de ciclo». 

Como sempre, o primeiro-ministro ‘assobiou ao cochicho’ e respondeu no mesmo jornal que a «mensagem do Presidente era menos para o Governo e mais para a oposição». Surreal.

António Costa não tem emenda, mesmo quando é ‘chamado à pedra’. Até Marques Mendes abandonou na SIC o estilo polido, ao considerar este Governo como «um misto do pior de Sócrates e de Guterres». Foi certeiro. 

Se um conselheiro de Estado já compreendeu o sarilho em que o país está metido, Marcelo Rebelo de Sousa não poderá dizer que não foi avisado…