José Tolentino Mendonça: ‘Interessa-me fazer o elogio da imperfeição’

É padre e poeta. Aos 47 anos, já editou quase 20 livros, entre poesia, ensaio e teatro. Nascido na Madeira, com um ano foi para Angola, onde passou o início da infância. Filho de pescador, a natureza moldou-lhe o olhar, a par da Bíblia e da poesia. Director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura,…

pela primeira vez está uma mulher à frente da reitoria da universidade católica. como vê esse passo?

é um sinal positivo, de muita esperança, a somar não só ao facto de ser mulher mas de ser esta mulher. a professora maria da glória garcia é uma pessoa com qualidades reconhecidas, com um currículo científico e humano que faz dela hoje bem mais que uma promessa.

a igreja é criticada pelo lugar que a mulher ocupa no seu seio. este é um sinal importante?

é muito importante para compreendermos como no interior da igreja a mulher tem um lugar. podemos discutir o lugar da mulher na igreja mas sem esquecer que o cristianismo tem sido um lugar de criação, reconhecimento, espaço de liderança e protagonismo, histórias de vida e renovação encabeçadas por mulheres. se olharmos a história da igreja é impossível não ver os grandes marcos que o feminino tem representado no seu interior.

que marcos são esses?

falo das grandes mulheres da igreja. em outubro, o papa bento xvi nomeou doutora da igreja hildegarda de bingen, uma música extraordinária, inventora de terapias, pintora de uma liberdade extraordinária. pensemos em edith stein, uma das grandes filósofas do século xx, mártir que morreu em auschwitz, ou na frágil teresa de calcutá, gigante da caridade e da esperança no mundo actual. há uma corrente que mostra como a dimensão feminina da igreja tem um potencial de fecundidade extraordinário.

é consultor do conselho pontifício para a cultura. como está o vaticano a relacionar-se com a cultura?

há uma conjuntura activa para perceber o lugar da cultura e a importância do diálogo com as artes. durante alguns séculos vigorou um divórcio que torna a expressão da fé mais pobre. a igreja precisa dos artistas, a cultura é o lugar de inscrição natural da igreja. o cristianismo tem que voltar a ser uma proposta culturalmente relevante. precisamos de uma nova linguagem, de uma nova gramática para traduzir de forma culturalmente relevante a mensagem cristã. não se trata de transformar a arte contemporânea numa arte religiosa ou sacra mas de perceber as especificidades de ambos os campos e de estabelecer diálogos, encontros, mútua auscultação.

essa não é uma linha ténue?

pensemos na encomenda da igreja de marco de canavezes ao siza vieira, que não é um criador católico mas que tem uma reflexão sobre o que é o espiritual, o que é o habitar, o que é um templo. o contributo que dá ao diálogo com a arquitectura de uma igreja é marcante. as duas partes ganham. para um arquitecto, construir uma igreja constitui um desafio e para as comunidades é um privilégio enorme ter grandes criadores a trabalhar dentro do seu espaço vital.

é capelão na capela do rato, que tem um grande diálogo com a arte contemporânea. como tem sido feito esse trabalho?

temos feito um percurso de diálogo entre o espaço sagrado e a arte contemporânea que procura ser de escuta mútua. promovemos diálogos abertos e depois os artistas são convidados a elaborar uma obra que fica no espaço litúrgico. tem sido uma experiência excepcional. o problema do património religioso estável é que nos habituamos a ele. obras extraordinárias como que fazem parte da mobília. precisamos de um esforço permanente para o fazer falar. um desafio para a igreja é não ficar apenas como administradora do património artístico, um peso e um custo que a igreja mantém com grande sacrifício e generosidade.

e pelo qual muitas vezes é criticada.

muitas vezes. o desafio é fazer falar as coisas: que uma pintura não se cale, que uma escultura continue a emocionar. é um trabalho da pastoral da cultura que é preciso activar de forma vigorosa, embora já se multipliquem as iniciativas. este é um momento na igreja em que se percebeu a importância da cultura.

como?

há os três transcendentais: o bem, a verdade e a beleza. durante muito tempo olhava-se para a religião, ou para a vivência religiosa, como a vivência da verdade e do bem. e não sabíamos o que fazer da beleza. dostoiévski pergunta: haverá uma beleza que nos salve? e a beleza tem sido nos últimos anos um campo de procura teológica, de pensamento, de publicação e de reflexão no interior das comunidades. hoje, a cultura e a arte tocam de forma transversal a igreja.

disse que tal como precisamos de pão precisamos do belo. continua a dizê-lo?

absolutamente. há um slogan de um sindicato americano: ‘precisamos de pão mas também de rosas’. no actual contexto de crise, de redução, de austeridade, de restrição, temos de dizer: precisamos de pão mas também de rosas. falar da arte não é falar de bens supérfluos de que possamos abdicar. tem a ver com o nosso projecto de pessoas, com o que queremos ser, o que nos faz felizes. os bens não valem apenas pelo seu valor comercial. se assim for o ser humano vale de facto 30 dinheiros. o que torna a nossa vida incalculável é sermos guardadores de coisas sem preço. como dizia keats, uma coisa bela é uma alegria para sempre.

a europa está a enfrentar a crise olhando para a economia e abdicando da cultura. a igreja pode impedir que isto aconteça?

quer o papa bento xvi, quer o cardeal ravasi, presidente do conselho pontifício para a cultura, têm falado em proteger a cultura, que é o futuro da europa. não podemos pensar numa europa que abdique da cultura. seria abdicar de si mesma: da sua identidade, da sua matriz, da sua vitalidade, daquilo que é o grande documento humano e do que a europa tem para oferecer no diálogo com os outros povos. a cultura tem que ser revalorizada. não podemos eliminar o que não é vantajoso do ponto de vista comercial. não pode ser esse o único critério, há um património que não se mede por essa métrica, que é inestimável do ponto de vista humano, necessário para a sobrevivência da pessoa humana.

no seu livro nenhum caminho será longo afirma que a perfeição é impossível. devemos aceitar-nos como somos?

interessa-me muito mais fazer o elogio da imperfeição. entender e abraçar a imperfeição, que é muito mais humana e verdadeira. o ideal da perfeição torna-se banal, estandardizado. a imperfeição carrega a singularidade, as marcas biográficas, o que corresponde ao vivido.

isso não vai contra o ‘não pecarás’?

gosto desta definição: um santo é um pecador que não desiste. o caminho espiritual que a igreja propõe é esse, um caminho de maturação, de transformação permanente. tem a ver com o que podemos dar a cada tempo da nossa vida. não é o homem que foi feito para a lei, é a lei que é feita para o homem. e é feita para o homem crescer, maturar, ter hipótese de ser em plenitude. a palavra pecado, na sua origem, significa falhar o alvo. o pecado é isso: quando não acertamos no essencial. mas com essas falhas também se aprende. tudo é caminho.

é primeiro padre e depois poeta, é primeiro poeta e depois padre, ou a poesia e o sacerdócio são indissociáveis?

perante uma folha em branco nós não somos nada. a folha em branco exige-nos esse exercício de ignorância. estamos sempre a começar. o que somos não interessa, o que escrevemos não interessa. interessa escrever a primeira palavra como se fosse a primeira palavra do mundo. essa é a experiência da poesia.

como é que encontrou a poesia?

ou a poesia me encontrou a mim…

como se encontraram?

tiveram muita importância três coisas. primeiro, o impacto das coisas do mundo. acredito no que diz sophia de mello breyner: que antes de tudo a poesia está no real. depois chegou-me através da tradição oral e aí a minha avó materna teve um papel importante pelas histórias que contava. e, por fim, o encontro com poetas que me marcaram muito. ler o photomaton & vox, do herberto helder, foi fundamental. o mesmo digo do evangelho de são lucas ou de são joão, ou o livro de job ou o cântico dos cânticos. perceber aquela suspensão entre som e sentido, que a poesia é, foi muito marcante em termos da minha humanidade e da construção do meu olhar.

rita.s.freire@sol.pt