Após o vírus, o que se segue?

Será ainda demasiado cedo para identificar todas as consequências desta epidemia, mas é já suficientemente tempo para compreender que depois do Covid-19 o mundo poderá nunca mais ser o mesmo».

Escrevi estas palavras na última crónica publicada neste espaço (completam-se agora 15 dias) e se alguma coisa devo corrigir é apenas a substituição da expressão ‘poderá ser’ pela afirmação ‘será’.

Angustio-me sempre com a especialidade que alguns, que me conhecem bem, me atribuem, que é a de ter razão antes de tempo. Sabe-se como, sobretudo em política, isso é nefasto, mas esse é o karma que tenho de cumprir até ao fim dos meus dias.

O dr. Jaime Gama, uma das mais fascinantes personalidades que conheci no mundo da política e da cultura, diz (citando um provérbio chinês) que a melhor atitude perante a injustiça e a incompreensão era aguardar, sentados à beira do rio, até que a corrente de água fizesse desfilar, perante cada um de nós, o cortejo dos cadáveres dos nossos inimigos. Talvez seja mas não sou capaz e, provavelmente seria sempre para mim demasiado tarde.

Mas, independentemente da avaliação dos estudos científicos, aliás, por enquanto insuficientemente validados, quando não são contraditórios, já não há dúvida, que a epidemia importada da China e alimentada nas redes sociais, provocará resultados negativos graves que ultrapassam o domínio da saúde pública.

Serão as consequências económicas que começam a sentir-se, para já, de forma acentuada nos mercadores financeiros e das ‘commodities’, mas que brevemente atacarão países, regiões ou setores específicos da atividade produtiva e serão, sobretudo, as consequências sociais e de perda de confiança que passarão a marcar as relações entre pessoas, países e continentes.

Das primeiras poderá resultar uma recessão global de resultados imprevisíveis sobre crescimento, emprego e coesão social; das segundas ocorrerá, inevitavelmente, o reforço das correntes de opinião que desejam uma desglobalização e anseiam por um regresso a formas de soberanismos e nacionalismos que, no passado, conduziram a resultados nefastos para a humanidade.

Ironicamente, o coronavírus (ou Covid 19) funciona, neste contexto, apenas como detonador, pois as condições objetivas que criaram uma nova ‘oportunidade’ para ruturas negativas já existiam, alavancadas como tem sido pelo alheamento de alguns países e líderes políticos em relação aos projetos de crescimento, solidariedade e integração com que se comprometeram.

Isto é particularmente visível no espaço da União Europeia e, seguramente porque o percecionou de forma muito clara, a Presidente da Comissão acaba de fazer um apelo dramático, ao fim de cem dias de exercício de funções, para que seja rapidamente aprovado o MFF (Quadro Financeiro Multianual para o período 2021/2027).

Só dispondo de recursos financeiros suficientes será possível acorrer, com sucesso, à epidemia na saúde, mas também ao grave problema dos refugiados que a Turquia criou, (com a ajuda ‘objetiva’ das indefinições orçamentais da UE) e, em especial, ao combate contra a desaceleração económica, seja através dos instrumentos tradicionais (políticas orçamentais pró-ativas) seja através de novos instrumentos orientados para as alterações climáticas e a transição justa para uma economia digital.

Começa a ficar claro (ficará?) que este não é o momento para disputas ‘guerreiras’ insensatas entre ‘amigos da coesão’, ‘frugais’ e ‘equidistantes’, até porque não é difícil adivinhar para que lado penderá, no fim, a balança da decisão.

Com a Itália, a terceira economia da Zona Euro, fechada e paralisada até, pelo menos, ao dia três de abril e com a certeza de que, embora em dimensão menor, outros casos se seguirão, aumentando de forma acentuada a pressão sobre dirigentes e opiniões públicas, tudo terá de ser feito para que não floresçam, ainda mais, as correntes de opinião de democracia iliberal que já ousam defender abertamente que «a época dos direitos humanos universais tem de acabar».

Já não há espaço para negar que a globalização e a cooperação multilateral que tantos benefícios trouxe à humanidade, tem de se reinventar e autorregular, invertendo a tendência de deterioração que se iniciou logo após a eleição de Trump como Presidente dos EE UU da América.

Por isso é tempo de a Europa compreender (como o recordou recentemente Joaquim Aguiar) que sendo o melhor projeto político que alguém já construiu, o mundo mudou e, por isso, também ela tem de mudar.

Como facilmente se adivinharia, Portugal pouco pode e vai contar para estas mudanças, o que não se deve tanto à sua dimensão e situação periférica (o Luxemburgo, a Bélgica, a Holanda, a Áustria e, alguns outros, contam e não são maiores) mas antes à situação de dependência exterior, que mesmo em períodos muito favoráveis, somos incapazes de contrariar.

A crise económica que se avizinha, e a recessão global que se teme, porão a nu essas debilidades, até porque os setores económicos em que tem assentado o fraco crescimento recente (turismo e especulação imobiliária) são os mais sensíveis às dificuldades.

Mais uma vez vamos ter de esperar que os outros resolvam os seus problemas, para podermos beneficiar, parcialmente, dos resultados que conseguirem.