“As melhores armas portuguesas não estão nos museus. estão todas neste edifício”

Descendente de diplomatas, nasceu em Viena, cresceu com a fome e a guerra por perto, mas cedo descobriu como podia fazer pequenos negócios. Em entrevista, conta-nos como fez fortuna com as armas da monarquia portuguesa. ‘Estavam a ser derretidas para libertar espaço de armazém’.

“As melhores armas portuguesas não estão nos museus. estão todas neste edifício”

Formado em 1701, o Reino da Prússia foi dissolvido em 1918, em consequência da derrota das potências imperiais na Grande Guerra. Mas na freguesia de Belas, concelho de Sintra, subsiste um retalho daquele antigo reino, numa quinta onde sucessivas gerações de diplomatas bismarkianos tiveram a sua residência. Quem o diz é o atual proprietário, o luso-alemão Rainer Daehnhardt, detentor de uma coleção de 500 mil peças, entre armas, armaduras, manuscritos, livros antigos, mapas, esculturas, etc.

Recebeu-nos nesta quinta dos seus antepassados, onde existe um dólmen pré-histórico, uma ermida e um pavilhão indoportuguês. A casa principal – a que os habitantes locais chamam palácio – reproduz a arquitetura da Saxónia. Rainer Daehnhardt conta-nos que passou fome durante a infância na Alemanha, mas hoje vive rodeado de antiguidades e obras de arte. Está tudo protegido por enormes cães – não sabe dizer quantos – e peças de artilharia apontadas a quem entra. «Não se preocupe», diz-nos com um sorriso. «Não estão todas carregadas».

Desde quando a sua família está em Portugal?

Minha família está cá desde 1706, e são sempre os representantes do Governo alemão – do reino da Prússia, do Deutsches Reich, do império Austro-húngaro, do reino da Saxónia e por aí fora. Há 24 antepassados meus que são diplomatas em Portugal. A minha avó, mãe do meu pai, nasceu nesta casa, no quarto que eu habito, no dia 20 de agosto de 1885. Filha do cônsul-geral do império Austro-Húngaro, Joahnnes Wimmer, armador da companhia J. Wimmer. O marido dela nasceu em Lisboa em 1876, era filho do cônsul-geral do Império Alemão. Uma parte da família já cá estava desde 1706. A outra estava desde 1800 e tal, ambas tinham vários diplomatas. A ideia era: fizessem na Alemanha as asneiras que fizessem, eles cá estavam para resolver. Quando eu cá cheguei não tinha nacionalidade, e foi Salazar que deu autorização de residência vitalícia.

Não tinha nacionalidade?

Meu pai nasceu na embaixada imperial alemã em Constantinopla, na Turquia, antes da Grande Guerra, por isso tinha de cumprir as leis alemãs. A minha mãe era portuguesa, nasceu em Lisboa em 1915. Em 1930 e tal estava na Alemanha um governo esquisito. Para casar tinha de se mostrar que nos últimos 200 anos não havia sangue judeu na família.

Como se contornou isso?

Onde é que arranja provas de que o seu trisavô não casou com alguém com sangue judeu? Hoje rimo-nos mas na altura eram problemas graves. Então casaram pela lei portuguesa. O que ninguém explicou à minha mãe foi que uma portuguesa que casa com um estrangeiro automaticamente perde a nacionalidade. E como não tinha casado pelas leis alemãs, também não tinha a nacionalidade alemã. Eu nasci em Viena de Áustria, que fazia parte da Grande Alemanha. Depois da 2.ª Guerra Mundial eu não tinha papéis nenhuns e a minha mãe era considerada fugitiva, chegou a estar escondida dentro de um armário, quando estávamos na zona de ocupação russa. Aquilo foi dramático. E depois tivemos de passar da zona de ocupação soviética para a zona de ocupação americana. Logo no fim da guerra era altura de entrar na escola – e não podia.

Porque não tinha papéis?

Porque não era alemão, era estrangeiro.

Então como estudou?

Entrei na primeira escola internacional de Frankfurt, que era uma escola judaica. Para não se chamar escola judaica, a chefe da escola, uma senhora de muita categoria, uma judia alemã – um dia até levantou a manga e mostrou-nos o número de Auschwitz tatuado no braço –, passou-me um documento especial.

Tem memórias de infância da II Guerra Mundial?

Claro. Durante o dia bombardeavam os americanos, de noite bombardeavam os britânicos – com tipos de bombas diferentes. Os britânicos atiravam bidons, aquilo escorria pelas paredes abaix a queimar. Eu via as alamedas com as árvores cheias de pingos a correr…

Isso em Viena?

Em Frankfurt – só estive em Viena três meses. E ao ver aquilo disse à minha mãe: ‘Parecem árvores de Natal, que coisa linda’. Só tinha três anos e meio. Mas uma pessoa que fosse apanhada por um pingo daquela porcaria… havia quem saltasse para o rio, mas aquilo continua a arder debaixo de água. Vi muitas coisas dessas. Eu brincava muito com as crianças do prédio em frente. Quando vinham as sirenes, eles iam para a cave deles e nós íamos para a nossa. E depois vrrroooomm, vrrroooomm, aquilo a rebentar. Uma vez saímos cá para fora e a casa em frente já não existia. Foram à procura nas ruínas se conseguiam encontrar alguém – uma quantidade de rapazes com quem eu brincava morreram todos. Estavam na cave, rebentaram as condutas da água, aquilo encheu até ao teto, morreram afogados.

Como se sobrevivia depois no meio das ruínas?

Da casa que tivemos em Frankfurt a única coisa que se salvou foi uma bicicleta. A minha mãe tinha recebido pelo casamento uma série de pratas antigas portuguesas, estavam na cave dentro de um baú grande, perdeu-se tudo. A bicicleta salvou-se porque a minha avó a tinha emprestado. Deu para duas semanas de comida. Depois acabou a comida da bicicleta… Nós morríamos de fome, literalmente. Uma irmã que nasceu depois de mim, em 47, morreu em 48, pura e simplesmente de falta de nutrição. Mesmo no fim da guerra, era o exército alemão que fazia a colheita da batata, porque extraíam o álcool da batata para fazerem o combustível do Messerschmitt 262 e do V1, a bomba voadora. Um dia encontro uma batata grande. Que tesouro! O que é que fiz? Arranjei um pau, fiz um furinho e tirei-lhe o sumo para não apodrecer. Assei-a inteira. Comi um terço da batata. Pus o resto num esconderijo e no dia seguinte comi o segundo terço. E no terceiro dia comi o terceiro terço. Lembro-me de tirar resina do tronco de uma árvore e mastigar a resina, para enganar o estômago. Lembro-me de me encostar à parede de uma ruína qualquer e vomitar com o estômago em seco, tais eram as dores da fome.

O seu pai combateu na guerra?

Vi o meu pai pela primeira vez aos sete anos. Foi obrigado a fazer serviço militar desde o primeiro dia da guerra contra a União Soviética, foi feito prisioneiro pelos soviéticos e foi um dos poucos que se conseguiu libertar. Usando roupa russa misturou-se num ataque e correu para as linhas alemãs. Levou uns dias até descobrirem que ele realmente era alemão. Quando um alemão é preso pelos soviéticos nunca mais é utilizado na frente de leste. Passou para as forças de ocupação em França. Lá, numa terra pequenina, houve uma situação chata: num café, dois soldados da SS estavam a meter-se com uma rapariga local. O meu pai, como oficial do exército, não podia dar ordens a soldados da SS. Mas achou impróprio aquele comportamento e interveio. Aquilo teve grande importância, porque quando se dá o avanço das tropas do Patton o meu pai foi feito prisioneiro pelos americanos. Só que os americanos, cheios de pressa para chegarem antes dos russos a Berlim, entregaram-no aos franceses. E os franceses, que tinham perdido imensa gente na guerra, usavam franceses da Argélia. O meu pai foi um dos 60 mil oficiais alemães que foram postos numa praia onde hoje há meninas com as maminhas ao léu: Cannes. A praia de Cannes era campo de concentração de soldados e oficiais alemães. Era arame farpado até ao mar. A latrina era o mar. Quem fosse mais de vinte metros para dentro do mar, havia torres, metralhadoras – TRRRRRR, TRRRRRR. Comida, zero. Cama, zero.

Como saiu dessa situação?

Foram enviados num navio para Oran, do outro lado do Mediterrâneo, depois veio a célebre marcha da morte, de Oran a Fez. Os últimos, que estavam a coxear ou iam fazer chichi, TRRRRRR, TRRRRRR. Mesmo assim entregaram milhares deles em Fez. Depois foi feito um tribunal de guerra e então dá-se a situação muito interessante. O presidente da câmara francês daquela terra onde meu pai era comandante, a seu próprio custo, em 44, atravessa o Mediterrâneo e vai a Fez testemunhar a favor do meu pai. O meu pai safou-se, os outros foram fuzilados.

Havia outros familiares seus com cargos oficiais no Terceiro Reich?

O meu avô, nascido em Lisboa, era cônsul-geral, primeiro do Império Alemão, depois da República de Weimar, e depois do Deutsches Reich. Um cônsul-geral está só três anos num país. O meu avô esteve 13 anos em Gotemburgo. Opasso a seguir a cônsul-geral era ser embaixador, e para ser embaixador…

Tinha de se comprometer?

Tinha de fazer um ano de serviço no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Berlim, e para isso tinha de ser membro do partido.

Tinha de prestar lealdade.

Tinha que fazer o juramento ao führer. Ele não fazia. Na minha família são alemães imperiais, do Bismark, não tem nada a ver com Adolfo e companhia. O meu avô era aristocrata e o Hitler não podia com os aristocratas. Os aristocratas de elite da 1.ª Guerra Mundial andavam em escolas onde aprendiam… [faz o gesto de manejar uma espada]

Esgrima?

O máximo da esgrima é levar um corte na cara. E era o amigo que fazia este corte, com um sabre. Tinha de ficar completamente quieto e o outro dava o golpe. Se o golpe fosse pequenino… enfim. Se o golpe fosse grande, era uma coisa muito honrosa, um tipo que tivesse um golpe desses, as raparigas… Tenho uma fotografia do meu avô com um golpe – [imita o som de uma lâmina a deslizar] zzzzzzzzz, vai até lá abaixo. Schmiss é o nome desse corte. E o Hitler não podia com oficiais com o schmiss.

O que aconteceu ao seu avô?

O meu avô carimbou cerca de 1400 passaportes de noruegueses e dinamarqueses, que através de Gotemburgo iam para os Estados Unidos. A Suécia era o único país neutral no Norte da Europa. Noruegueses que queriam fugir para a América do Norte ou do Sul iam para a Suécia e subiam a bordo de navios neutrais para atravessar o Atlântico. Os navios tinham uma grande bandeira sueca pintada de um lado e do outro, e de noite andavam com as luzes todas acesas. Quem fosse sueco não precisava de autorização, mas se fosse norueguês ou dinamarquês precisava. O meu avô carimbou cerca de 1400 passaportes porque tinha pena deles e achava que não fazia mal ao Reich. Mas depois de a situação política ter mudado, algum espião na embaixada do Deutsches Reich em Estocolmo terá achado estranho. Como é que um professor da universidade de Bergen fala de manhã com o cônsul-geral Heinrich Daehnhardt, almoça com ele e no fim do almoço apanha o barco com a mulher e o filho, quando só para perguntar a Berlim demorava algumas horas? O meu avô aristocrata alemão da velha craveira imperial bismarkiana foi para Berlim e preso pela Gestapo. O atentado contra Hitler foi a 20 de julho de 44, nós enterrámos o meu avô a 8 de agosto. Não foi fuzilado, sucumbiu à tortura no interrogatório.

Em que altura o Rainer veio pela primeira vez a Portugal?

A primeira vez que vim a Portugal foi em 49. Isto era um paraíso! Ver cidades em pé! Viemos de automóvel da Alemanha. Atravessámos a Espanha… que desgraça! Os postes da eletricidade ou do telégrafo eram todos tortos. Cá era tudo direitinho. Quando se chegava a Portugal havia estrada asfaltada, uma coisa que em Espanha não existia. Portugal era um paraíso. E depois havia outra coisa que eu adorava: as pessoas olhavam para os olhos dos outros com à-vontade. Se entro num restaurante e estão lá alemães da 2.ª GM, estão todos de costas para a parede. Ninguém se senta de costas para uma porta – é para autodefesa. Cá vivia-se à vontade. Quando entrei para Escola Alemã em Lisboa avisaram-me: ‘Podes andar em qualquer sítio a qualquer hora. Cautela só num sítio. À volta dos bares do Cais do Sodré. Andam lá marinheiros estrangeiros, aquilo é do piorio’. Não era como na Alemanha.

Nessa altura, em novo, já se interessava por armas?

Vou dizer-lhe como isso começou. No fim da guerra quem fosse apanhado com uma arma era encostado à parede e fuzilado. Quem tinha uma arma, quando vieram os americanos, atirou-a fora, em geral para um riacho ou para uns arbustos. Eu ia lá e encontrava, duas, três. A minha primeira coleção foi a apanhar armas do chão. Cheguei a ter 50 e tal pistolas alemãs daquela altura.

Um arsenal!

Mas depois aconteceu uma coisa dramática. Nessa altura, o pai de um colega meu da escola voltou do campo de concentração. Ele, todo contente, mostrou ao pai que tinha encontrado uma pistola, uma P38, de 9 mm, e o pai ficou horrorizado. O que é que faz? A pior coisa que podia fazer. À hora do recolher obrigatório, põe um casaco de chuva e vai atirar a pistola para o rio.

Foi apanhado?

Antes de chegar ao rio é apanhado por uma patrulha americana. É encostado à parede e fuzilado. Passou-se em 47.

Isso não o fez perder o gosto pelas armas?

Não gosto nada de armas modernas. Armas modernas para mim são ferramentas de guerra e as guerras são todas elas erradas. Enterrei essas armas todas perto de uma árvore numa floresta. Bastantes anos mais tarde fui à procura. Estava lá já um bairro.

Como começou então a colecionar antiguidades?

Comecei a trabalhar aos nove anos de idade apanhando bolas num campo de ténis. Aos dez anos tinha ganho dinheiro suficiente para comprar uma bicicleta. Nessa bicicleta montei um cesto à frente e um cesto atrás e fazia entregas de roupa lavada. Quando chovia era o diabo. Muitas vezes lá empurrava aquelas trouxas todas numa grande subida, as pessoas espreitavam por trás das cortinas, viam que era o rapaz da lavandaria, o dono da casa não estava ou não lhes calhava pagar, e eu tinha de levar aquilo tudo de volta sem receber nada. Então fiz umas alterações à bicicleta e passei a ir a tipografias e a fazer entregas de livros a livrarias.

Isso ainda em Frankfurt?

Em Frankfurt.

Começou a interessar-se por livros?

Fazia entregas dos livros e depois havia uma o outra pessoa que tinha uma espada em casa ou uma lança. ‘O menino gosta disso? Era do meu avô’. E outras coisas. Havia um jogo das caricas. Fiz entregas de garrafas num café na floresta, daqueles onde as pessoas iam ao fim-de-semana. Arrumava o vasilhame e ofereciam-me as caricas. Tinha caixas e caixas cheias de caricas. Aí fiz um erro grave. Percebi que as caricas mais lisas eram as melhores para jogar e um dia experimentei pôr na linha do elétrico. O elétrico passou e ‘tlac-tlac’, ficaram direitinhas! Então pus aí umas 200 caricas, todas em fileira, na linha n.º 6, que ia para o Palmengarten. Veio o carro elétrico, passou por cima e ‘trrrrrrrr’, saltou fora dos carris! Foi uma catástrofe.

Nunca mais pôs caricas na linha do elétrico…

Nunca mais pus no elétrico n.º 6. [risos] Essas caricas eu depois transformava em berlindes de vidro, que eram valiosos.

As caricas eram quase moedas?

Sim, e com x berlindes de vidro conseguia um soldadinho de chumbo ou de estanho. Tinha caixas e caixas de caricas bem achatadinhas, e sabia atirá-las. Chegava a receber um saco de berlindes de vidro num dia, já era dinheiro.

E fazia negócio com outras coisas?

Uma vez passei ao pé de uma oficina um tipo a quem os soldados americanos traziam peles da América e ele lá sabia curtir as peles e transformá-las em bordas de casaco, golas, xailes para as madames e não sei quê. E há um ursinho pequenino na América, parece que tem uma máscara dos bandidos.

O guaxinim?

Isso. E tem uma cauda listada. Eu via-os a trabalhar, para curtir usavam uns ácidos, aquilo cheirava muito mal. ‘E este rabinho, o que fazem com isto?’. ‘Se quiseres dou-te’. Fiquei todo contente. Na minha bicicleta pus um aramezinho e montei aquele rabinho. No dia seguinte era inveja em toda a escola. Ofereciam-me 50 pfennig, um marco por aquilo. Fui lá à oficina. ‘Vocês têm uma caixa cheia daqueles rabinhos. Não me podiam vender?’ ‘Está bem’. Alguns não prestavam, lixo. Os que estavam bons, vendia-os por 50 pfennig, era uma moeda de prata. Acabei por vender centenas e centenas daqueles rabinhos para os miúdos porem nas bicicletas. Com esse dinheiro comprava lanças, espadas, baionetas, facas, coisas a que achava graça…

Quando veio para cá continuou a fazer negócios desses?

Vim para cá de vez com 16 anos e tinha de pagar a Escola Alemã. 400 escudos por mês, era um ordenado. Na altura vi que havia atlas incompletos, porque alguém tinha rasgado, danificado ou roubado uma folha, e os livreiros nem os queriam. Quem quisesse comprar era x a folha. Lá na escola alemã havia um professor de Bremen, outro de Munique… Então eu comprava uma vista de Bremen, um mapa de Munique e por aí fora. Depois fazia um passe-partout, ia a um carpinteiro e comprava ripa para fazer a moldura, ia ao vidraceiro e comprava o vidro. No fim apresentava aquilo emoldurado pronto para pendurar na parede. Vendia aos professores e depois aos pais dos alunos. Assim fui pagando os estudos.

O que estudou?

Tirei o curso politécnico, já não existe. Cá acaba o 12.º ano e as pessoas ou vão para letras ou para ciências. Mas no sistema de ensino alemão havia a hipótese de fazer o estudo conjunto das duas coisas. São mais anos, mas já equivale à universidade. Podia fazer as 15 disciplinas com exames divididos por dois anos. Mas estava farto dessa gaita, então inscrevi-me para fazer os exames todos na mesma altura. Em três meses fiz os exames das 15 disciplinas. Saí de lá com 5 vintes, oito dezoitos, um 14 e um dez a Francês.

Contou-me que passou fome, mas hoje vive num palácio. Como se dá essa passagem?

Quer saber como é que eu fiz dinheiro? Situações macacas, ter os tomates no sítio e saber o que está a fazer – desculpe a terminologia mas às vezes explica mais numa palavra do que em duas horas de blá-blá-blá. Meu pai nunca me deu um tostão, mas via-o às vezes e num célebre dia sou convidado a tomar parte num almoço que ele organizou com os engenheiros antigos da firma Romar e da Demag, de que ele era diretor-geral. E  nesse almoço há uma pessoa que me pergunta: ‘Gosta de espadas? Estamos fartos de espadas até aos cabelos!’. ‘Fartos de espadas? Porquê?’. ‘Com a guerra no Ultramar, estamos a fabricar G3. Mas precisamos de espaço. O único que temos são os armazéns gerais de material de guerra de Beirolas. Estão cheios de armas da monarquia que ninguém quer. Sabres e mais sabres. Aquilo é derretido no forno mas vem com um sebo medonho, e faz uma espuma que nos entope os sistemas todos’.

Estavam a derreter essas armas?

O Governo português estava a derreter as espadas da monarquia. As espadas com as quais Mouzinho de Albuquerque tomou grande parte de Moçambique, por exemplo, foi tudo derretido ali.

Como a custódia de Belém, que só por pouco não foi fundida…

Exatamente, foi o D. Fernando II que a safou. Ele descreveu a espada. ‘Já sei, isso é modelo de 1872. A espada com a bainha deve pesar muito aproximadamente mil gramas, um quilo cada espada. O quilo de ferro para derreter está a um escudo. O governo recebe um escudo da Siderurgia Nacional e destrói as espadas para criar espaço para pôr lá as G3’. Uns dias depois estou na casa de um tenente-coronel meu amigo e digo-lhe: ‘Em Beirolas estão a cometer um crime. Estão a fornecer à Siderurgia Nacional as espadas com as quais a nossa cavalaria e a nossa artilharia lutou nesta batalha, nesta e nesta’. Ele telefonou logo para a repartição do Exército. ‘Sim senhor, é verdade, estão a vendê-las à Siderurgia a um escudo cada’. Na altura eu já era membro de várias associações de armas antigas, da Gesellschaft für Historische Waffen und Kostümkunde, em Berlim, da Arms and Armour Society em Londres, da Accademia de San Marciano, em Turim, e pedi para ser recebido pelo ministro do Exército. Fui recebido e disse-lhe: ‘Não posso concordar que estejam a ser destruídas as ferramentas com que se escreveu a história de Portugal no Ultramar. Se os senhores as usassem para fazer panóplias, para mostrar… muito bem. Mas destruir está errado!’. Ficaram um bocado fulos comigo, mas o ministro tomou uma decisão: vender as espadas.

A si?

Não, aos oficiais. A dez escudos cada uma. Não demorou mais de meio ano até receber um telefonema do ministro para me apresentar novamente. ‘O senhor tem-nos causado um prejuízo medonho’. ‘Em quê?’. Ele abre a porta: ‘Veja os gabinetes. Estão vazios! Não está fulano, não está cicrano, nem beltrano. Sabe onde é que estão? Estão todos lá em baixo na menina dos carimbos, a carimbar as guias para irem a Beirolas para comprar espadas E VENDEREM AS ESPADAS A SI! Não diga que não!’. ‘É verdade, todos os dias vêm 10, 15 oficiais venderem-me espadas. É tudo legal, não está nada errado nisso’. ‘Não consigo fazer nada, não está cá ninguém, está tudo em Beirolas ou lá em baixo para receber os carimbos ou a levantar o material e entrega a si! Porque é que o senhor não nos compra a nós?’.

Era o que você queria ouvir, não?

‘Nem sabia que era possível. Os senhores estavam a derretê-las e recebiam um escudo por quilo e agora estão a vendê-las a dez escudos’. ‘Pois. E os meus oficiais estão a vender ao senhor a 150 escudos’. ‘Eu limpo-as, arranjo-as e vendo-as a 250 escudos’. ‘O quê???!’. Depois faz o seguinte. ‘De negócios não percebo nada. Eu preciso é de espaço. O senhor compra-nos as espadas todas?’. ‘Para responder a essa pergunta tenho de saber quantas são e em que estado estão para fazer as minhas contas’. ‘Não, não, não. O senhor não sai daqui sem dizer: ou compra as espadas ou não compra as espadas’. Como estou um bocado renitente, ele arma-se em comerciante. ‘Faço-lhe um desconto de 10%. Dá 135 escudos cada unidade’. E neste segundo eu tive que decidir. Fui pelo meu subconsciente. ‘Sim, senhor, fico com as espadas todas’. E não pensei mais na questão. Passadas duas semanas recebo uma carta do ministério com uma fatura.

De quanto?

OITO MILHÕES e mais não sei quantos escudos! Um número com tantos zeros, tantos zeros! Um Volkswagen novo custava 45 contos. Eu recebo uma fatura de oito mil, seiscentos e não sei quantos contos! Telefono para lá e digo: ‘Deve haver um engano’. Vou lá novamente falar com ele, ele novamente zangado comigo: ‘Qual é o problema das contas?’. ‘Não há problema, eu tive de dar a minha resposta mas havia um número que o senhor não me forneceu’. Ligou para Beirolas e eu oiço: ‘Senhor comandante, isto é só a contagem do armazém 6. [risos] O armazém 5 está cheio. E o 7 também’. O que é que eu faço? Falo com um tenente-coronel pai de um muito bom amigo meu e explico-lhe a situação. E ele diz-me: ‘O que é que o Rainer vai fazer com tanta espada?’. ‘Vou escolher as melhores para mim e as outras vou vendê-las’. ‘Onde?’. ‘Para todo o mundo. São espadas de colecionador, a posse é legal, posso exportá-las, as pessoas fazem decoração, fica giro em qualquer parte. Eu consigo colocar isto’. Ele falou com um banco e deu a quinta dele como garantia de um empréstimo e fez uma hipoteca. E forneceu o dinheiro para a compra toda, dos oito mil e tal contos e depois foram mais sete…

Havia os outros armazéns.

Também. Metade do dinheiro ia para ele para devolver ao banco e outra metade foi para mim. Fui vendendo ao estrangeiro, uma firma que vendia por catálogo comprava-me logo às centenas de cada vez. Mesmo no mundo das armas antigas muita gente pensava: ‘Os netos dele ainda vão vender espadas do modelo de 1872’. Quais netos, qual carapuça, dois anos depois estava tudo vendido. Sabe quem pagou esta piscina?

As espadas?

Uns caixotes que deixei na arrecadação. Quando precisei, fui buscar os caixotes e paguei a piscina. Como tive contacto com Beirolas fui sabendo coisas. Por exemplo, eles tinham baionetas Kropatchek e colocaram-nas num concurso internacional. A baioneta completa com bainha valia no mínimo 50 escudos, e sem bainha 15 escudos. Eu ofereci 17 escudos. Um bocadinho acima. Porquê? Porque o fiel do armazém disse-me que eles pediram-lhe para contar só as baionetas que estavam no armazém 4. Ninguém lhe perguntou onde estavam as bainhas. Estavam no armazém 3. Foram-me adjudicadas as baionetas todas, só duma vez entregaram-me 17 mil baionetas, e o fiel do armazém forneceu-me as 17 mil bainhas. Até me deu chatice no 25 de Abril.

O que foi?

Vendi a um comerciante noutro país 1500 baionetas. Dá-se o 25 de Abril e recebo um telefonema do meu despachante: ‘Sr. Rainer, estão aqui umas Berliers estão a cercar o quarteirão por causa de armas suas’. O CopCon leva-me para um interrogatório. ‘O senhor tem um amigo que é Rui Pena, fundador de um partido da reação’. ‘O CDS? O CDS é muito à esquerda’. ‘O que quer dizer com isso?’. ‘Esses não têm tomates para pegar em armas’ [risos]. Foi mesmo assim. É gente medíocre. A palavra armas em muita gente acorda o Belzebu. Sabe por que razão esta vale 50 escudos e esta vale 500 escudos?

Também havia umas que valiam 500 escudos?

 Quando o número da bainha condiz com o número da arma, a diferença é mais um zero. Isso deu-me fundos de maneio com que depois podia comprar coisas boas para a minha coleção.

Qual foi a coisa melhor que lhe passou pelas mãos?

A minha mulher. [risos]

Estava a falar de armas…

É impossível dizer. As melhores armas portuguesas em existência estão todas neste edifício. Todas. As melhores dos museus portugueses são armas que me foram nacionalizadas pelo Governo de Vasco Gonçalves no verão de 1975, 500 armas que estão hoje no Museu Militar. E essas são mais fracas do que as que tenho aqui. Tenho as armas que D. João VI levou para o Brasil. Trouxe-as de volta. 1,6 milhões de dólares. E fora isso tenho muitas outras. Uma das minhas últimas caçadas grandes foi o elmo de D. Sebastião da batalha de Alcácer Quibir, que andou perdido pelo mundo fora.

Como o identificou?

Para mim é relativamente fácil. Um elmo normal é feito em ferro, um elmo super-especial, como este, é feito em aço. E mais ainda em aço temperado. Quem faz uma armadura para um rei é como quem faz um fato para um rei ou para uma rainha: nunca pode permitir que seja feito outro igual. O nosso D. Sebastião era muito poupado. Não mandava fazer armaduras, recebia-as de presente e a maioria delas foi do seu primo o duque de Saboia, que era 26 anos mais velho. A barriga alargava e ele já não cabia na armadura. Então oferecia ao sobrinho. Há quadros com D. Sebastião nesta ou naquela armadura, e com esses quadros nós temos pormenores exatos que nos permitem saber qual foi o mestre que a criou, em que oficina, em que época, em que data. Muito mais difícil foi fazer a contagem dos golpes de espada que ele teve, dos golpes de arma de fogo, depois a rapina do ouro que estava em cima do elmo e foi todo raspado. Escrevi um livro sobre isso, um calhamaço. As pessoas falam sempre muito das minhas armas e armaduras, mas perdi 500 com a nacionalização.

E foi recompensado?

Recebi um milhão de dólares do Governo português, porque foi uma nacionalização imposta pelo PREC, o Processo Revolucionário em Curso, com o qual eu não concordei minimamente.