A cultura do ‘Eu’

Li e reli, já não posso precisar há quanto tempo, um artigo muito interessante cujo título – O mito da autorrealização – tem tudo a ver com o tema que hoje estou aqui a partilhar.

O seu autor, José Carlos Nunes, que bem conheço e por quem tenho especial admiração, homem culto, estudioso, com grande experiência na matéria e com um pensamento bem à frente do seu tempo, põe o dedo na ferida de um dos mais graves problemas da atualidade: a cultura do ‘Eu’. E digo grave na medida em que, pelas consequências que acarreta, vai interferir irremediavelmente com outro ponto fulcral da sociedade, a Família, setor que me atinge em particular até por ser… médico de família.    

Ao ‘saborear’ o tal artigo de conteúdo riquíssimo, convidando a uma profunda reflexão, encontro lá a melhor explicação para o mito da autorrealização atrás citada: «Pensa em ti mesmo e serás feliz. O nós é uma escolha secundária, porque em primeiro lugar está sempre o ‘Eu’. Foi isto que o sistema social, educativo, cultural e psicológico ensinou…».

Com a minha experiência (que é alguma) e pelo que vou vendo nas consultas, tenho ocasião de comprovar a veracidade desta reflexão. Os jovens de hoje permanecem em casa dos pais cada vez até mais tarde – apesar de eventuais ligações que vão tendo aqui e ali. Depois, numa fase mais adiantada da vida, quando já têm relacionamentos permanentes, preferem viver cada um em sua casa a ‘juntarem os trapinhos’. Quando abordo o assunto e pergunto qual a razão para tal procedimento, na esmagadora maioria dos casos a resposta é a mesma: «Não estou para abdicar dos meus hábitos, nem do meu estilo de vida».

Há também outras situações, hoje em dia muito na moda, dizendo respeito a casais com muitos anos de vida em comum e estrutura familiar aparentemente sólida, em que um dos membros do casal decide ir para o estrangeiro fazer um estágio ou um curso de formação para valorização profissional, sem termo certo. Aí, o ‘Eu’ da minha formação ou da minha carreira fala mais alto do que o ‘nós’ da família, sempre a eterna sacrificada!

Ao nível do ensino, setor que devia ser o primeiro a ditar as linhas mestras da formação, o espírito competitivo é o que prevalece. Ser melhor do que os outros é o objetivo. Ser o melhor em tudo, custe o que custar, não olhando a valores nem às mais elementares regras de solidariedade que devem existir entre as pessoas. Ficar sempre em primeiro lugar e obter a melhor classificação do grupo é o que hoje se incute na cabeça dos jovens e aquilo que, de facto, conta para a vida.

Presentemente, a licenciatura já não chega, é necessário mestrado, doutoramento e outras tantas formações adicionais que não param de aparecer na vida dos homens, a ponto de, por vezes, eles próprios nunca se sentirem plenamente realizados.

Esta cultura do ‘Eu’, cada vez mais evidente nos nossos dias, quer se queira quer não, veio interferir com a família, estrutura também ela em crise. À medida que aumenta o ‘eu’ diminui o ‘nós’ – e é a família que sofre. Está provado que alguns dos mais graves problemas da sociedade, nomeadamente, a violência e a criminalidade, sem falar de comportamentos aditivos, se deve à ausência de família. Mas nem por isso se vê qualquer apelo à sua defesa, nem a alguma inversão das orientações ou das regras a que estamos sujeitos.

Com a bata branca, não me canso de chamar a atenção para as consequências de certos estilos de vida e de comportamentos que considero errados do ponto de vista médico, mas geralmente fico com a ideia de nem sempre ser ouvido.

Não adianta ignorar a realidade. Por ora, vamos continuar assim. A cultura do ‘Eu’ foi imposta à sociedade. Ou foi a sociedade que a impôs a nós?