Entrevista a Joana Schenker: “Os títulos são o meu selo de qualidade para quem não vê bodyboard”

Há mais de três décadas, um casal de alemães fixava-se em Pedralva, uma aldeia rural do concelho de Vila do Bispo, em Sagres. Ali viram nascer quatro filhas. Joana Schenker seria a mais velha do quarteto feminino. Em 2017, fez história ao tornar-se a primeira portuguesa a sagrar-se campeã mundial de bodyboard, mas para a…

Entrevista a Joana Schenker: “Os títulos são o meu selo de qualidade para quem não vê bodyboard”

Sagres, ‘The End Of The World’. Para os teus pais foi mesmo o fim do mundo. Por que decidiram ficar em Sagres?

Os meus pais eram viajantes do mundo, andaram por todo o lado e por acaso vieram até ao Algarve, porque tinham aqui amigos, e apaixonaram-se. Não foi mesmo em Sagres, mas sim em Pedralva, que é uma vilazinha, naquela altura minúscula. Encontraram um terreno barato e ficaram.
 
Mas já nasces cá?
Sim, sim, eu nasci em Portugal.
 
Que recordações tens da tua infância?
Nessa aldeia onde crescemos não havia telemóveis, internet ou televisão. A minha mãe fez questão de não ter televisão, mas foi uma infância muito boa. Agora, quando olho para trás, ainda dou mais valor porque crescemos no meio da natureza. Tenho três irmãs mais novas e crescemos numa liberdade total, algo que hoje em dia é difícil, e por isso foi muito bom. Os meus pais vieram para Portugal também por causa da praia, nós íamos para a praia o ano todo. Muito antes de começar a praticar bodyboard já passávamos muito tempo na praia.

Achas que o bodyboard está para Sagres como o Algarve está para o verão? Ou seja, é como que um destino obrigatório?
É, é! Sagres tem mais história e uma tradição já muito antiga. Quando iniciei o bodyboard já por lá existiam lendas. A maior parte das pessoas em Sagres pratica bodyboard e não surf, o que é estranho, porque temos um turismo de surf enorme. Mas os locais fazem bodyboard.
 
Daí teres começado…
Completamente, os meus amigos da escola faziam e eu certo dia fui experimentar com eles. Nem ninguém me perguntou: «Que prancha queres?». Não, foi logo: «Está aqui uma prancha de bodyboard, vamos para a praia».
 
O que faziam os teus pais e como reagiram a esta decisão?
Os meus pais faziam turismo rural em Pedralva e aceitaram bastante bem. Viram que me inseri num grupo de amizade muito saudável e sempre me apoiaram a 100%. A minha mãe era o meu táxi particular [risos]. Levava-me à praia e tinha de ficar à espera porque a minha casa ainda ficava a quinze minutos de distância. Os meus amigos também me apanhavam na escola, porque eram um pouco mais velhos. Havia uma grande entreajuda para que pudéssemos ir o máximo de vezes possível à praia, era quase um ecossistema.
 
E como é que ficou a combinação escola/bodyboard? Eras aquela miúda que acabava por faltar às aulas para ir apanhar uma onda? Deste dores de cabeça aos teus pais nesse sentido?
Não, a verdade é que sempre tive muito boas notas. Tinha alguma facilidade na escola, o que me ajudou, porque faltei a muitas aulas, muitas. De tal maneira que eu levava a prancha para a escola, ficava lá no canto e assim que havia um espacinho, ou assim que terminavam as aulas, ou até quando eu achava que não era uma aula lá muito importante, lá ia eu [risos]. A minha mãe justificava todas as faltas porque via que ninguém me chateava, mesmo os próprios professores, porque eu não tinha problema nenhum na escola. Portanto, eles sabiam que eu ia para a praia e quando me ia embora da escola a meio do dia já toda a gente se ria e dizia: «Ah vais para a praia não é?». Mas sempre de uma forma saudável e controlada. Se tivesse más notas a minha mãe acabava logo com aquilo, óbvio.
 
Quando é que o bodyboard deixa de ser uma brincadeira e passa a ser uma coisa mais séria?
É difícil dizer. De repente apercebi-me de que tudo o que comecei a fazer era em prol do bodyboard. No início investi tudo o que tinha. Trabalhava no verão, fazia part time para conseguir pagar os campeonatos, e depois os apoios foram surgindo conforme fui apresentando resultados. Chegou um dia em que percebi que tudo o que fazia era em função do bodyboard. Optei por não ir para a universidade para praticar a tempo inteiro, depois comecei a ter os primeiros patrocínios que me ajudavam financeiramente e isto foi crescendo…
 
Em 2017 tiveste o ponto alto da carreira. Foste a primeira portuguesa a sagrar-se campeã Mundial na modalidade. Já tinhas vários títulos nacionais e europeus, mas quando atinges-te este feito como te sentiste?
Foi incrível porque, para já, era um sonho que tinha desde miúda e que nunca imaginei que pudesse tornar-se realidade. Mesmo na altura, quando comecei, pensava: «Meu Deus, eu queria fazer isto um dia, mas não sei se vou conseguir». Por isso, foi também muito especial. Em Portugal nunca houve um campeão mundial de bodyboard nem de surf e nós temos muito talento, não havia nenhuma razão para não termos este título. Quando aconteceu, ainda por cima numa praia portuguesa, na Nazaré, foi uma vitória não só minha, mas de toda a comunidade.
 
E logo na etapa caseira. Tornou a conquista ainda mais especial?
Foi a loucura!
 
Na altura falei contigo por telemóvel e recordo-me de que a tua reação foi: «Ainda assim quero continuar e quero mais!». Passaram cerca de dois anos, tens agora 32, qual é o balanço desde aquele momento?
No bodyboard, a nível competitivo, cada ano começa do zero. Não podemos ficar encostados aos títulos anteriores, que são bons e não se apagam, mas que no fundo já não são válidos. Portanto, estar na luta pelo título e nos primeiros lugares do ranking é sempre um objetivo e é o que eu quero. Mesmo a nível nacional, não são objetivos fáceis: estamos sempre a evoluir, toda a minha concorrência está a evoluir também. Sou também ambiciosa a nível pessoal, quero surfar melhor e isso nunca acaba. Agora, mesmo tendo 32 anos, acho que estou em muito melhor forma em termos técnicos de bodyboard do que há três ou quatro anos. Sinto que ainda estou a evoluir no desporto, portanto enquanto eu tiver essa sensação vou continuar.
 
E como tens acompanhado o crescimento do turismo em Sagres? 
Sagres está no mapa das ondas boas. Nós já as temos desde sempre, mas não era visto como aquele local de onde saem atletas profissionais ou campeões, apesar de termos tido já vários campeões nacionais vindos de Sagres. O facto de me ter tornado campeã mundial é também um marco que fica na história do desporto de Portugal e o nome da terra nunca mais se apaga. O próprio município foi – e ainda é – um dos meus grandes patrocinadores. Foram eles que me conseguiram manter no circuito até isto acontecer.
 
Pergunto isto porque vi que publicaste nas redes sociais uma espécie de regra de ouro para quem faz surf ou bodyboard: ‘Publica apenas fotografias de boas ondas quando não há nenhuma’. Sentes que a tua casa está a ser ‘invadida’ quando vês que está demasiada gente na praia? 
[Risos] Vou ser muito sincera… Sim! Apesar de as pessoas pensarem que as ondas boas não acabam, num dia bom não há milhares de ondas boas, há até muito poucas. Temos que partilhar com todos, como é óbvio, mas também queremos poder aproveitar as ondas do nosso sítio. As redes sociais chamam muita gente e eu tenho o cuidado de só pôr fotografias naqueles dias em que já não há ondas, que é para não chamar ainda mais pessoas [risos], mas é inevitável porque toda a terra vive do turismo e faz parte. É bom virem pessoas, portanto nós também acarinhamos os visitantes. Só que queremos é que venham todo o ano e não apenas quando há ondas boas [risos].
 
És ainda uma mulher de causas. Os teus dias também passam pela tentativa de consciencializar os mais jovens sobre as preocupações relacionadas com o meio ambiente. Quando sentiste a urgência de começar a passar esta mensagem? 
Para já porque cresci com isso, esses valores acompanharam-me sempre. Tornei-me vegetariana aos dez anos porque não queria magoar os animais, mas era uma coisa de miúda. Depois fui crescendo e a minha mãe também nos educou sempre nesse sentido. Agora, mais recentemente, a questão do oceano e estas palestras que dou nas escolas foi um desafio lançado pelo Oceanário de Lisboa, a Fundação Oceano Azul, que tem esses valores e a vontade de espalhar essa mensagem. Acharam que eu era a pessoa ideal. Confesso que, no início, estava muito nervosa porque sou um bocado tímida.
 
Quantas escolas já visitaste?
Já passámos por cinquenta escolas e mais de seis mil alunos desde 2019. Até agora foram todas no Algarve, mas a ideia é sair. Foi só por uma questão de conveniência, por ser mais perto para mim, mas tem sido um sucesso e também tenho sentido o gosto de passar esta mensagem. 
 
E como olhas para o exemplo da Greta Thunberg, que desperta muitas críticas positivas mas também muitas negativas?
É um bocadinho difícil, porque acho que o que a Greta está a fazer tem o efeito necessário que é chamar a atenção. Não há má publicidade quando se trata de salvar o planeta. Desde que as pessoas falem disso temos que ouvir – e toda a gente conhece a Greta, portanto aí está a ter sucesso. Se é a melhor maneira de passar a mensagem, não sei. Se calhar não é a minha maneira, mas se funciona, então, siga! Acho que tudo o que funcione nesse sentido [de salvar o planeta] é válido.
 
Temos o exemplo das praias no sudeste asiático, que estão cada vez mais poluídas e onde começam a ser decretadas certas medidas de prevenção, como os conhecidos horários de fecho. Também já disseste que por cá já viste cenários de ‘partir o coração’… 
Já vi praias, mesmo na nossa zona [Sagres], que é uma zona protegida por um parque natural, completamente cheias de plástico. Cheias! O plástico já existe no mar, conforme a corrente está ele vem ou não vem e nota-se muito mais plástico agora do que há alguns anos. Não é tão visível todos os dias porque temos sorte em relação às correntes, o nosso país não fica naquela zona que leva com o plástico todo, mas já estamos a apanhar resíduos. E basta ir a qualquer praia que apanhamos cotonetes, beatas e coisas muito pequeninas que são muito chatas de limpar. Os objetos maiores notam-se menos agora, porque as pessoas estão mais educadas e quando veem uma garrafa de água, por exemplo, apanham. Mas os restantes que referi já ninguém vai apanhar.
 
Nas palestras que tens dado, sentes que os mais jovens estão cada vez mais conscientes desta responsabilidade individual?
Eles percebem e é incrível porque chego a pensar que percebem melhor que certos adultos. Falo-lhes do futuro, mas eles próprios têm a sensibilidade de imaginar a praia como um sítio dos animais – e que deve estar limpo. Quando veem um pedaço de lixo no chão, sentem que isso está errado. Muitas vezes digo-lhes que não devem apanhar o lixo para mostrarem aos outros, mas sim porque isso vai fazer com que se sintam melhor, como uma questão de vaidade própria. Não é para mais ninguém, é só para nós e isso funciona. Temos que ter o brio de fazer o que é certo.

Os jovens são cada vez mais alerta para as questões ambientais e manifestam-se até nesse sentido. Mas não são os mesmos jovens que depois viajam de avião e consomem desenfreadamente – o que leva a uma maior produção e consequentemente a níveis muito elevados de poluição? Também conseguem ter essa perceção?
Em alguns aspetos sim. Acho que aí somos todos culpados. Viajo de avião se calhar muito mais do que outras pessoas, ninguém aqui é perfeito e não podemos apontar dedos. Cada um deve fazer o melhor que pode. Não posso abdicar de andar de avião porque também faz parte do meu trabalho, mas deixei de comer carne há 22 anos. Quando pergunto aos miúdos se alguém tem uma garrafa reutilizável, percebo que a maioria já tem. São pequenos passos e, claro, vai levar muito tempo até sermos todos muito verdes. Todos temos muito para fazer, não são só os miúdos.
 
Costumas usar uma frase de um fotógrafo norte-americano que diz que a natureza, uma vez destruída, não dá para voltar a comprar. Achas que no final do dia é isso que as pessoas parecem ainda não entender – que há certas coisas que não têm preço?
Essa frase marcou-me muito porque fiquei a pensar exatamente isso, uma vez destruído já não há nada a fazer. No final, qual é o valor do dinheiro? Ou qual é o valor da natureza? Não dá para comprar. Se pensarmos nesses aspetos é automático deixarmos de fazer algumas coisas. Às vezes é complicado porque estamos distraídos e não pensamos nisso.
 
Também já falaste do facto de te teres tornado vegetariana. Como é que uma menina com dez anos toma essa decisão e como passa a ser a logística lá por casa?
A minha mãe já era semi-vegetariana, por isso não foi um choque muito grande. Na altura pensei: «Eu gosto dos animais, não os consigo comer»; depois, muito mais tarde, apercebi-me de que esta alimentação tinha benefícios em tudo, na saúde, no ambiente… Mas a razão principal para me ter tornado vegetariana naquela altura foi porque gostava tanto dos animais que não os conseguia comer, nem carne nem peixe.
 
Ia perguntar se tinhas notado diferenças no rendimento desportivo depois de adotares esses novos hábitos alimentares, mas assim perdeu o sentido [risos]…
[risos] Sim, sempre cresci a alimentar-me dessa maneira e, sinceramente, acho que só me trouxe benefícios.
 
Mas nunca houve uma fase em que te dissessem que certos nutrientes te faziam falta, nem que fosse por estares em fase de crescimento?
Sim, sim [risos]. Ouvi muitas vezes: «É preciso proteína para teres força…».
 
Mas foste uma pioneira… Agora há imensos vegetarianos, mas há 20 anos devia ser algo raro.
A minha mãe era muito liberal. Dizia-me que comesse o que quisesse e também ela tinha algum cuidado, sempre tivemos comida biológica em casa – aliás, sempre houve muito pouca carne em casa. Mesmo na questão de não termos televisão, também são um bocadinho aquelas manias dos alemães [risos]. Foi muito natural.

Num país com a nossa gastronomia, o que custou mais nessa tomada de decisão?
O que me custou muito deixar, quando me tornei vegetariana, foi o camarão, o patê de sardinha e frango no churrasco [risos]. Mas quando o motivo é maior deixamos de ter vontade de comer aquele alimento, ou neste caso, o animal. Por isso não me custou assim tanto. Hoje em dia sei que o frango no churrasco cheira muito bem, mas não me dá vontade nenhuma de comer.
 
E como é que fazias quando ias jantar fora com amigos? Há uns anos não havia a oferta de restaurantes que temos hoje.
Terrível, era terrível. Lembro-me de comer sopa, omeletes, muitas omeletes, de tal maneira que enjoei e já quase não consigo comer ovo [risos]. Quando íamos ao McDonald’s pedia um hambúrguer sem hambúrguer, só o pão [risos]. Comia muitas sobremesas e batatas fritas porque não havia realmente opções. Quando comia fora de casa não conseguia fazer uma alimentação saudável, mas foi o preço a pagar. Nunca questionei a minha escolha alimentar por não haver opções.
 
E alguma vez questionaste a escolha do bodyboard? Como foi construir uma carreira no feminino? Levaste muitas ‘amonas’ até teres conseguido patrocínios?
Bastantes! Nós começamos com o apoio dos pais, naqueles primeiros anos em que não temos dinheiro nenhum e queremos ir a campeonatos temos de contar com os tais ‘paitrocínios’. Eu ganhei alguns campeonatos, depois começaram a entrar com algum dinheiro, eu fazia part-time no verão e o meu namorado, que também é bodyboarder [Francisco Pinheiro], ajudava-me muitas vezes. Foi assim que fui crescendo. Agora, quando olho para trás, sinto que quase que foi bom ter sido desta forma, porque de alguma maneira tornou-nos muito mais resilientes.
 
O teu namorado que é agora o teu treinador e a pessoa a quem, curiosamente, compraste a tua primeira prancha de bodyboard…
É engraçado, comprei a minha primeira prancha na surf shop onde ele trabalhava e foi ele que ma vendeu numa altura em que ninguém imaginava [que iríamos começar a namorar]. Depois passávamos muito tempo juntos na praia, acabámos por começar a namorar e foi muito natural a forma como começou a ajudar-me no desporto. Quando ganhei o título mundial fiquei também muito feliz porque ele acreditou muito mais do que eu. Sempre me apoiou. Às vezes há aquelas relações em que um namorado não quer que a namorada vá para um mundial, para fora. Ele sempre me incentivou a ir, aliás, sem ele eu não tinha vencido os títulos que venci, sempre puxou por mim. Em certas alturas eu teria desistido e ele nunca me deixou. 
 
Vais continuar a competir no mundial?
Vou continuar. A próxima época começa este mês. Depois em maio vou para o Brasil, que é quando começa o mundial. Vai ser um ano comprido, mas vou lá estar para lutar pelo título.
 
Pode parecer tarde teres conquistado o Campeonato Mundial aos 30 anos, mas a verdade é que a primeira vez que entras-te foi aos 29. Foi quase ‘chegar, ver e vencer’.
Exatamente, conquistei o mundial na minha segunda época na competição, talvez tenha batido o recorde de rapidez [risos]. Fiz o ano inicial só em 2016, foi o ano em que consegui os patrocinadores para conseguir competir, muito mais tarde do que era suposto. Mas sinto-me perfeitamente capaz de lutar pelo título mundial. É esse o meu objetivo e é atingível se as coisas correrem bem.

Achas que o estilo de vida descontraído que vos é associado faz muitas vezes esquecer os sacrifícios que fazem parte deste tipo de profissão?
Isso é verdade, é de facto um estilo de vida muito bom, estar na praia o dia todo com os amigos. No entanto é um trabalho e tenho a pressão de garantir títulos e isso é muito intenso. Às vezes pode parecer que é só entrar na água e apanhar ondas assim à maluca, mas treinamos o ano todo, quando apetece e quando não apetece, quando o mar está gelado e quando não está, quando as ondas estão grandes e estamos cheios de medo e temos de ir na mesma. Não são só rosas. Acabamos por retirarmo-nos um bocadinho do resto do mundo. Deixamos de fazer o que algumas pessoas fazem como viajar para sítios que não tenham ondas, não vamos a festas de amigos fora de horas quando o calendário impede. Tudo isso fica para trás, temos outras prioridades.
 
Já alguma vez pensaste em deixar de competir?
Logo no início, quando as coisas não me corriam bem e não era muito competitiva e tinha de aprender a ser, pensei que se calhar não tinha jeito. O que vale é que passei esse primeiro obstáculo [risos].
 
E para quem acha que é um desporto perigoso é preciso dizer que as cicatrizes que tens no corpo, ao contrário do que muita gente pensa, não têm nada a ver com o bodyboard, não é?
Não, não! Foi um acidente em casa. Tinha menos de 10 anos e estava com a minha irmã, que era bebé, no colo. A minha mãe estava a fazer compotas e estava a esterilizar os frascos numa panela muito grande com água a ferver e a minha irmã puxou a panela para cima de nós as duas e ficámos completamente queimadas.
 
E qual foi o maior susto que apanhaste no mar?
Já me aleijei várias vezes, mas nunca tive aquela sensação de que iria morrer. O pior que podemos fazer é entrar em pânico, temos que manter a calma. Mas já apanhei muitos sustos e acho que vou continuar a apanhar. O desconforto nunca acaba e isso é bom.
 
Também te treinas nesse sentido?
Sim, e há coisas que também vamos aprendendo, não estamos completamente sozinhos. Começamos a ler o mar e eu não me ponho em apuros de forma irracional ou estúpida, é controlado, mas claro que o mar não é 100% controlável. Em Portugal a maior parte das ondas onde treino são de fundo de areia, que é um tipo de onda muito diferente dos fundos de rocha – e uma parte do Mundial é feita nesses fundos. O bodyboard como é um desporto extremo e gosta de caracterizar-se por isso vai para aqueles sítios onde muitas pessoas nem sequer vão surfar e as mulheres, como querem acompanhar os homens, agora também estão a surfar ondas que há cinco ou seis anos nenhuma mulher surfava.
 
Quais são as tuas três praias favoritas aqui em Portugal para praticar bodyboard? Agora não vale mentir para correres com as pessoas das praias [risos]…
[Risos] Não, vou ser sincera. Adoro a praia do Zavial, não só pela onda mas pelo sítio em si, é a minha praia favorita do mundo inteiro. Gosto muito da praia da Cordoama, que é a minha praia do verão e a terceira… Portugal tem uma costa incrível, mas eu gosto muito da praia da Costa Nova. Não tem nada a ver com as minhas praias, mas é onde tenho as minhas melhores memórias de competições.
 
Por falar na nossa costa, também deixas frequentemente alertas às pessoas que fazem campismo selvagem, pedindo que tenham respeito pelos locais. É complicado fazer com que as pessoas respeitem as regras de determinada zona?
Sim, é um bocadinho. Principalmente na nossa zona que é a Costa Vicentina e nós estamos a sentir exatamente isso. É um campismo selvagem que está completamente descontrolado, porque uma ou duas carrinhas a pernoitar não é mau, o problema é que são centenas. Centenas todos os dias! Quando há muitas caravanas ou carrinhas, que não têm sequer casa de banho, o meio ambiente à volta fica muito complicado no final. Temos esse problema e estamos a tentar combatê-lo,  mas é muito difícil. Em vários sítios de Portugal é proibido pernoitar nas praias, e lá [Sagres] também é proibido, mas a lei é um bocadinho ‘deixa andar’ e permitiram que crescesse um problema que se tornou uma moda. Como pôr nas redes sociais uma fotografia com os pés fora da carrinha, ou fogueiras na praia, é um cliché. As pessoas estão a promover um turismo que não é legal.
 
Qual foi a história mais caricata que tiveste em competição?
Tive muitas! Desde viagens completamente perdida, noites no aeroporto. Houve uma muito gira em que saímos de Sagres para ir para França e nessa altura não havia GPS, tínhamos um mapa. Quisemos ir por um caminho mais curto, acabámos por passar mesmo por cima dos picos da Europa e demorámos mais seis horas do que era suposto, além de o carro ter avariado. Histórias dessas tenho mil [risos]. 
 
O que costumas fazer nos tempos livres?
Gosto muito de ouvir música, passo muito tempo no Youtube, gosto de ler, e às vezes de não fazer nada [risos]. 

Ainda não és adepta da televisão? 
Não, nunca fui, não. Sou mais adepta do computador. E também não sou daquelas pessoas que vai para a praia estender a toalha e apanhar sol, nunca faço isso. Para mim praia sem ondas não faz sentido nenhum sequer [risos]. De resto gosto de passar o tempo com os meus amigos que é coisa que muitas vezes não faço…
 
Continuas a viver na aldeia onde cresceste?
Agora estou mesmo em Sagres.

E as tuas irmãs? Alguma também seguiu esta vertente desportiva?
Uma fazia bodyboard bastante bem mas acabou por ir estudar desporto e agora está na Áustria a trabalhar nas pistas de esqui. A mais pequenina está na Alemanha a estudar botânica de interiores? Não sei bem, tem um nome específico de que não me estou a lembrar, mas a ideia é fazer prédios com plantas e coisas assim. A terceira também está na Alemanha e é mãe.
 
Costumas ir à Alemanha?
Muito poucas vezes. A minha família vem toda cá e eu acabo por não ter nenhuma razão para lá ir. Na realidade, quando vou à Alemanha normalmente é para ir a um funeral.
 
Tirando a família, não há qualquer tipo de ligação à Alemanha?
Exatamente, não há.

Mas falas alemão…
Sim, é a minha primeira língua porque cresci a falar alemão. Depois passei a falar português quando entrei na escola primária.
 
Hoje em dia o que é que os teus pais dizem do teu percurso? Ainda vão à praia apoiar-te?
Às vezes sim. A minha mãe quando são campeonatos prefere ficar afastada, nem sequer me liga. Liga-me todos os dias mas quando estou em campeonato não me liga durante uma semana [risos]. Diz que não quer influenciar o resultado [risos]. Mas vai e gosta de ir à praia. 
 
O teu pai também?
Os meus pais separaram-se e eu estive muito tempo sem ter contacto com o meu pai, mais recentemente voltámos a ter mais contacto e também tem ido. Mas verdade seja dita, é mais a minha mãe. Até me tem dito: «Agora que não te levo à praia nunca vou. Tenho que te ir ver porque senão não tenho desculpa para ir à praia» [risos].
 
Tens noção de que também quebraste um bocadinho o conceito de que as meninas desportistas não são tão femininas? 
Sim, metem-me esse rótulo e eu também me ponho a jeito. [risos]. Mas até acho que é uma coisa boa, porque não vejo onde é que está o problema de uma mulher ser feminina e ter rendimento desportivo, isso é um mito. Se quiser tirar uma fotografia em fato-de-banho tiro e se quiser apanhar uma onda grande vou. Uma coisa não invalida a outra e até acho que termos uma autoestima saudável, até nos faz bem em termos desportivos porque ficamos mais confiantes. Não há nenhum problema em usar salto alto numa noite e no dia a seguir calçar uns pés de pato. E prefiro estar com os pés de pato [risos]. Apesar de tudo, os pés de pato não doem tanto como o salto alto.
 
Tens jovens que te procuram para tentarem perceber como podem fazer um percurso igual neste meio?
Ultimamente sim. Sinto que tenho esse papel porque quebrei uma data de barreiras, o bodyboard está em sítios que nunca antes esteve, em Portugal e mesmo lá fora. Muitas miúdas que adoram o desporto e que antes nunca pensaram que pudesse ser uma carreira já olham para o bodyboard como um futuro e isso deixa-me muito feliz. O que tento dizer é que não nos podemos focar apenas numa coisa, temos que ser multifacetados. Temos que nos abrir ao mundo, o bodyboard em si é muito pequenino para sustentar toda uma carreira.
 
Já percebi que não está nos teus planos para já, mas tens alguma ideia de quando terminarás a tua carreira de desportista?
Pelo menos até aos 35 anos dá perfeitamente para continuar competitiva. Depois disso, vamos ver. Conforme me sinta, tenha ou não patrocinadores e conforme me apeteça. Chega a um ponto em que a competição desgasta, estamos metade do ano fora, nos mesmos lugares a fazer a mesma coisas, e chegará ao ponto em que terei outros objetivos. Nessa altura logo vejo.
 
Dizes que ‘a melhor maneira de estar viva é estar metade morta por teres feito demasiado bodyboard’. É este o teu lema de vida?
[Risos]. Sim. Disse isso depois de um dia em que estava quase morta fisicamente e esses são os dias em que nos sentimos mais vivos, foi um bom dia. Já não conseguimos mexer os braços, mas temos uma memória cheia de ondas boas, são os momentos em que estou mais feliz com o bodyboard, mais até do que ganhar um campeonato. 
 
A praia é sempre o melhor remédio?
É, é. Mas é mesmo. Há um bocado aquele cliché de ir à praia desanuviar a cabeça e deixar os problemas. Eu já nem vejo assim, para mim ir à praia é tão fundamental que se eu não for parece que não almocei. É mesmo como falhar uma refeição.