A emergência de Marcelo…

Moral da história: não aprendemos nada com a China, nem com os primeiros sinais de que o ‘cerco sanitário’ à volta de Wuhan – com uma população equivalente à de Portugal – eram para ser levados a sério.

Descontadas algumas leviandades, o estado de emergência foi interiorizado pelos portugueses antes de ser declarado. 

Viu-se na corrida aos supermercados e às farmácias; na menor circulação de pessoas nas ruas e nas estradas; nos restaurantes fechados e nas esplanadas desertas; no movimento residual nos centros comerciais. 
O que espanta é que, sendo a natureza do novo coronavírus conhecida há mais de três meses, desde que eclodiu em Wuhan, e tendo sido identificado imediatamente o seu potencial de contágio e de risco, não se tenham adotado a Ocidente as medidas de prevenção e contenção adequadas. 

O retrato da situação de contingência em Portugal não foI inovador, comparativamente com o que se passou em Itália, Reino Unido, França ou Espanha, apanhados de surpresa pelo vendaval da epidemia.

Acumularam-se as contradições no discurso oficial, e as medidas foram surgindo, a ‘conta-gotas’, muito a reboque dos acontecimentos, após um sentimento inicial de desvalorização do vírus, como se a China fosse noutro planeta.

As fragilidades do SNS vieram ao de cima, como era de prever, sem poder contar muito com os hospitais privados, que não dispõem de camas livres e de quartos de isolamento suficientes para enfrentar o surto. Depois, há que acudir a outras patologias, graves ou crónicas. 

Percebeu-se depressa que a rede hospitalar pública, com um histórico cheio de mazelas, não poderia regenerar-se de um dia para o outro e corresponder satisfatoriamente às exigências acrescidas de tratamento dos infetados.

A reação tardia poderá ter custos rápidos. O alastramento do vírus soma e segue, e muito daquilo que nos garantiam ficou ultrapassado em poucos dias, confirmando os piores receios sobre a adequação do sistema.

Perante este quadro sombrio, António Costa desta vez não se ‘eclipsou’ e assumiu-se como primeiro-ministro, procurando temperar fundamentalismos e, até, cobrir ‘diplomaticamente’ a precipitada clausura a que se recolheu Marcelo Rebelo de Sousa. 

Com o Presidente fechado em casa, desbaratando os seus créditos de proximidade nas aflições, Costa desdobrou-se em contactos internos e externos, em reuniões de Governo e em conferências de imprensa, transmitindo uma ideia de pragmatismo e de ação francamente positivos. 

Poderá ter sido evasivo ou omisso aqui e acolá, mas corrigiu algumas falhas anteriores, de discurso e de previsão; e, embora tardio a condicionar a circulação nas fronteiras terrestres, sentiu-se que o fez para articular os procedimentos com o seu homólogo espanhol, cuja atuação, aliás, tem sido desastrosa. 

A mensagem do Governo mudou substancialmente. Resta saber se as hesitações quanto à estratégia a seguir, e as dificuldades do SNS, não poderão contribuir para o agravamento da contaminação.

Houve muito amadorismo e displicência. E só com os alarmes a disparar é que o Governo adotou regras mais ‘musculadas’, embora com a Linha Saúde 24 ‘entupida’ e sem capacidade de resposta. 

Moral da história: não aprendemos nada com a China, nem com os primeiros sinais de que o ‘cerco sanitário’ à volta de Wuhan – com uma população equivalente à de Portugal – eram para ser levados a sério. Tão-pouco com as medidas drásticas aplicadas em Macau, de casinos encerrados e com as fronteiras severamente controladas. 

Com a leveza do costume, fomos adiando, como se o problema nos fosse estranho. 

Entretanto, na ‘frente mediática’ os telejornais esgotam-se com o covid-19, e a imprensa rasga títulos abrasivos nas primeiras páginas. As populações estão assustadas e as comunidades jornalísticas não menos. 

Se a ministra da Saúde faz por lembrar que existe, Mário Centeno tem agora a oportunidade soberana de fazer jus ao epíteto de ‘Ronaldo das Finanças’, riscando das contas o excedente orçamental que tencionava exibir como ‘dote’ antes de ‘dar o nó’ com o Banco de Portugal. 

Ambos poderão cogitar sobre os estranhos desígnios do destino – que, num caso, deitaram por terra a improvisada Lei de Bases da Saúde, de matriz ideológica, e, noutro, a almofada financeira, ‘forrada’ de muitas cativações. 

O vírus teve o condão de ‘anestesiar’ a oposição, da esquerda à direita, revelando finalmente um primeiro-ministro com aptidões de liderança que pareciam improváveis. 

Na entrevista à SIC, na segunda-feira, Costa foi convincente perante um fogoso pivô que, embora exagerado nas interrupções, mostrou não obedecer a um guião de favor. E obrigou mesmo o primeiro-ministro a sair em defesa do Presidente por causa do retiro em Cascais. O ‘pronto-socorro’ mudou de mãos e de sítio… 

A reclusão autoimposta de Marcelo Rebelo de Sousa fez-lhe mal. Desde que apareceu no terraço de sua casa, acumulou infelicidades, que tiveram como corolário uma entrevista surreal à TVI, via Skype, e a impensável mensagem ‘pessoal’, gravada sem a menor qualidade, improvisada, que nunca deveria ter sido emitida. Em ambos os momentos, o Presidente perdeu parte do prestígio e popularidade acumulados neste mandato. Quem diria que Marcelo poderia entrar em ‘derrapagem’ súbita nesta curva escorregadia provocada pelo vírus? Recuperou um pouco anteontem, no anúncio do estado de emergência, mas os danos são irremediáveis.

Seja qual for o balanço final da covid-19 em Portugal, Marcelo andou demasiado tempo em ‘contramão’. A emergência também é dele.