O Estado em emergência

Tem-se abusado da metáfora da guerra, a meu ver, mal. Uma vez, parece atraente, para conseguir efeitos de união e coesão, coragem e resiliência, ânimo e determinação vitoriosa. Mas a insistência corre o risco de distrair e desviar o foco do tipo de esforço a fazer.

Só uma crise deste tipo permitiria declarar o estado de emergência de forma tão pacífica. Este é um quadro constitucional de excepção que permite comprimir direitos, liberdades e garantias para enfrentar certas crises: agressão estrangeira, grave perturbação da ordem constitucional democrática e calamidade pública. Nunca fora declarado na vigência da Constituição. Pelo seu conteúdo, qualquer teórico imagina, em abstracto, dramatismo e divisão agreste entre actores políticos. Nada disso aconteceu. Consenso e união – grande sinal.

Tem-se abusado da metáfora da guerra, a meu ver, mal. Uma vez, parece atraente, para conseguir efeitos de união e coesão, coragem e resiliência, ânimo e determinação vitoriosa. Mas a insistência corre o risco de distrair e desviar o foco do tipo de esforço a fazer. Esta crise não é uma guerra, é uma crise sanitária, uma muito perigosa emergência de saúde pública. Não é para militares, mas para ser combatida e ganha por civis. Não é para polícias. É uma crise para médicos e profissionais de saúde; e para cada um de nós, cidadãos, alvos do risco de contágio e potenciais transmissores. O Estado-Maior é o Governo e, em especial, a administração da Saúde, a que todos deverão subordinar-se, incluindo militares e polícias, sempre exemplares nas áreas das suas responsabilidades. O êxito do combate não se mede em batalhões ou em mísseis; mede-se em medidas preventivas, comportamentos de contenção, capacidade hospitalar, vigilância sanitária, mobilização clínica e cívica, uma para atacar, outra para se defender do mesmo inimigo: o vírus novo.

O esforço não pode correr o risco de ser interrompido a qualquer momento, por contendas jurídicas. É isso que a declaração do estado de emergência veio obviar: habilitou o Estado a vestir por inteiro a emergência e, decidindo sempre com proporcionalidade, adoptar as medidas a cada momento indispensáveis para enfrentar e vencer a pandemia. Agora, nenhuma querela ocorrerá dentro do naipe de campos que o Decreto, muito competente, fixou: direito de deslocação e de fixação; propriedade e iniciativa económica privada, incluindo a requisição de bens e serviços e outras intervenções na actividade empresarial; direitos dos trabalhadores; circulação internacional; direito de reunião e manifestação; liberdade de culto; e direito de resistência. Ressalvaram-se os direitos que não sofrem diminuição: os direitos à vida, à integridade e identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, garantias penais fundamentais, liberdades de consciência e religião, de expressão e de informação.

A crise vai ser longa. O primeiro-ministro declarou prever o pico em fim de Abril, indo a crise até fim de Maio. É um período longo. Para protecção da saúde e da vida dos portugueses, o Estado não pode falhar em nenhuma destas dez semanas. Para isso, foi investido plenamente na emergência e não será perturbado na direcção do esforço global que tem de conduzir.

A declaração será renovada a cada período de 15 dias, enquanto a perigosidade da crise sanitária se mantiver. Tem como fundamento a calamidade pública no quadro mundial – a OMS afirmou a «pandemia global» e apontou «níveis alarmantes de propagação e inação». Visa impedir qualquer inacção do Estado português, por fragilidade estatutária, que favorecesse o descontrolo da situação e nos atolasse em terrível calamidade pública, também por cá. O êxito maior será poupar os portugueses a uma calamidade aterradora. Para isso, a evolução da situação ditará a cada momento, com grande latitude constitucional, as medidas adequadas e o modo como as calibrar.

por José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS