Covid-19. Semana crítica

Os próximos dias vão permitir perceber se maior isolamento social está a ter impacto na curva de novos casos ou se o país segue a trajetória de Itália e Espanha. Baixo número de testes e falta de equipamento preocupa: ‘Se o exército vai para a guerra sem armas começa a ter baixas’.

Covid-19. Semana crítica

Um dos médicos italianos que nas últimas semanas deu testemunho da tragédia que se está a viver na Lombardia recordava o silêncio que a certa altura ficou no hospital depois de esvaziarem enfermarias e cancelarem consultas e cirurgias à espera da ‘onda’. Nos últimos dias, a calma aparente começou a notar-se cá. A afluência às urgências a nível nacional caiu para cerca de metade na última semana, revelam os dados diários publicados pelo Ministério da Saúde, um mínimo inédito desde que existem os registos online. E também nunca sentido por quem anda nos hospitais. Cancelou-se o que não era urgente, em alguns casos passando as marcações para uma consulta à distância e centros de saúde, para proteger os doentes mas também tentar evitar a entrada inadvertida do vírus no campo de batalha.

Nos hospitais da linha da frente, no Norte e em Lisboa, a resposta ao número crescente de casos tornou-se mais exigente para as equipas, determinadas e a tentar adaptar-se às contingências. E ao mesmo tempo reorganizaram-se serviços, repetem-se reuniões, procura-se equipamento, fazem-se conferências telefónicas com colegas chineses, italianos e espanhóis, que apanharam primeiro com o que acabou por ser o ‘tsunami’ da covid-19. E não há muito tempo para falar entre uma coisa e outra. «Há um nervoso miudinho», diz ao SOL Tomás Lamas, médico intensivista no Egas Moniz, que no sábado passado fez um apelo público para que o país ‘fechasse’ a tempo de não passar da fase de sépsis à ‘falência multiorgância’ que apanhou Itália. Na quarta-feira, o país entrou em estado de emergência e o isolamento tornou-se uma obrigação, ficar em casa um dever. «Enquanto que os italianos não tiveram a oportunidade de perceber a gravidade do que estavam a enfrentar, nós, depois dos italianos, começamos a ver a catástrofe em Espanha, a ver que a Alemanha vai atrás», diz. A preocupação tem sido organizar, procurar equipamento, tentar ver o que é possível comprar, ver como vão funcionar os turnos se alguém falhar, dar formação em cuidados intensivos e ventilação a mais pessoas, a tempo de poderem intervir se for preciso. E as conversas com os colegas lá fora ajudam a encontrar soluções e perceber com o que contar: «Temos de aprender com eles, isto é um inimigo desconhecido e temos de aprender o pouco que os outros já ganharam de experiência para não cometermos os mesmos erros. As estratégias definem-se nestas discussões entre os profissionais». A falta de material de proteção tem sido das mais gritantes: o São João avançou na segunda-feira com o uso de máscara por todos os profissionais, uma orientação já emitida pela Direção Geral da Saúde, mas continua a haver serviços sem equipamento ou a ter de o racionar e onde se usam as mesmas máscaras vários dias. «Não é só a questão da máscara, isso é o que vamos conseguindo, o problema é a proteção do corpo, da cabeça, os óculos. As administrações estão a tentar comprar, fala-se com fornecedores na China, mas o Governo não transmite às suas tropas que é para ir para a guerra com armas que não encravam. Ir para a guerra com uma arma que não está a funcionar, que não nos protege dos vírus, o que vai acontecer é que o exército começa a ter baixas e as coisas podem falhar».

Com o exército a preparar-se, a convicção é que a semana que agora entra será decisiva para perceber o curso da epidemia no país: a expectativa é que se comece a sentir um abrandamento no número de novos casos, depois de na outra semana terem fechado várias escolas para conter a progressão do vírus mas também universidades e autarquias terem suspendido atividades e muitas empresas terem avançado para o teletrabalho. As escolas fecharam definitivamente na passada segunda-feira e o movimento nas ruas foi-se tornando menor, à medida que aumentaram os casos suspeitos e confirmados de covid-19 e há mais de 9000 pessoas que tiveram contacto com doentes em vigilância ativa pelas autoridades, obrigadas agora a permanecer em casa, mas até aqui em isolamento profilático voluntário, o que deverá permitir travar o aumento exponencial da epidemia nos últimos dias. Ainda assim, o Governo tem apontado o pico para o final de abril, admitindo que os novos casos poderão continuar a aumentar nas próximas semanas.
Óscar Felgueiras, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que tem estado a fazer projeções para a curva epidémica com base nos dados da Direção Geral da Saúde, estima que o aumento menos acentuado dos casos nos últimos dias em termos percentuais poderá já refletir algumas medidas de maior isolamento social, uma vez que o desfasamento entre o início de sintomas e o diagnóstico tem rondado cinco dias contra os oito dias estudados na China. Mas os próximos dias é que vão consolidar ou não a tendência e é vital não baixar a guarda e reforçar o despiste.

Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, admite que a semana é crítica. «Ou entramos em modo Espanha e Itália ou entramos num cenário mais benigno, é o momento decisivo. Temos as medidas implementadas desde a semana passada e o impacto devia estar agora a aparecer, mas o problema é que também temos feito poucos testes», diz.

Não só em quantidade, mas também a um grupo ainda restrito de pessoas e com regras que considera pouco claras. E numa epidemia em que se tenta aprender com os exemplos dos outros, o caso da Coreia do Sul, que testou 150 mil pessoas e conseguiu amainar o tsunami, é a referência. Sobretudo quando a tragédia de Itália assume já proporções maiores do que as da China. «Nós estamos a aprender à medida que vamos e aparentemente os contextos em que houve uma massificação de testes com identificação rápida dos casos, o seu isolamento e quarentena dos contactos, os resultados tendem a ser melhores», afirma Ricardo Mexia. Portugal tinha testado até esta quinta-feira cerca de 7700 casos suspeitos acumulados, confirmando-se 1020 casos, uma taxa de positivos relativamente elevada quando comparada com outros países e que pode indiciar subnotificação, explica Óscar Felgueiras. Mas, por outro lado, há um indicador positivo: baixaram de 48% para 15% os casos com febre, o que sugere que o sistema estará a apanhar também casos ligeiros e que poderiam passar despercebidos.

Ricardo Mexia alerta no entanto que há relatos de casos validados como suspeitos que não foram testados e não se percebe se estão a ser contabilizados. E defende que é preciso alargar o teste a todos os casos de infeção respiratória, pelo menos numa amostra da população. «O critério devia ser alargado e deixar aos clínicos, às pessoas que têm os doentes à frente, fazer a apreciação do que está em causa e se pede o teste ou não e continua a haver grandes restrições», alerta o médico de saúde pública, lamentando que se mantenha a centralização das decisões no SNS24 e Linha de Apoio ao Médico, onde tem havido dificuldades de resposta apesar do reforço das equipas nas últimas semanas.

O Governo anunciou ontem que tem agora capacidade diária para 9000 testes e garantiu que será reforçada essa capacidade. O SOL sabe que 7000 são nos hospitais e 2000 nos laboratórios privados. Mas só esta quinta-feira o número de testes passou a barreira dos 2000, tendo rondado os mil nos dias com mais despistes. «Se existe capacidade para 9000, não se percebe por que motivo se fazem mil», questiona Ricardo Mexia.

Também Tomás Lamas admite que a capacidade para testar doentes é uma das preocupações nesta fase, pela escassez de kits, equipamento de proteção necessário e também pela demora do processo. «Temos duas semanas de vantagem, Espanha fechou o país ao mesmo tempo que nós e já estava num crescimento maior, mas se não fizermos testes COVID19 pensamos que estamos a fazer um bom trabalho e pode não ser verdade».

Outro receio continuam a ser os ventiladores e falta de equipamento de proteção individual e têm sido feitos esforços para reforçar stocks, procurar fornecedores e até doações, mas está longe de ser suficiente para um cenário como o italiano ou o espanhol. «O levantamento apurou que existem 1146 ventiladores, mas se tivermos 100 mil doentes infetados e 2% precisarem de ventiladores, são precisos 2000», diz o médico Tomás Lamas.

(artigo originalmente publicado na edição impressa do SOL, no sábado)