Reflexões quaresmais

 A experiência empurra para a pedagogia. Pregam-se sermões, dão-se conselhos mesmo a quem os não pede.

Venho confrontar o leitor com três reflexões correspondentes a outros três artigos a publicar sucessivamente. Mescla de passado, presente e futuro, na conceção de Agostinho de Hipona, que sustentava só haver presente, embora este revestisse as modalidades de presente/passado (memória), presente/momento e presente/futuro(antecipação). O franciscano Boaventura substituiria o último termo por previsão, o que configurava, no séc. XIII, uma surpreendente linguagem de planeamento. Avanços metodológicos de um e outro, fruto do mistério da santidade, enquanto doutores da Igreja, em qualquer caso de vanguardismo. O certo é que, ao aproximar-me dos 85 anos, o dia a dia me transborda de recordações, sem anular tentativas adivinhatórias. A experiência empurra para a pedagogia. Pregam-se sermões, dão-se conselhos mesmo a quem os não pede. Tento embora, como atenuante, ser breve e direto. 

Por outro lado, no contexto pré-Pascal em que escrevo seria sempre aconselhável evitar explanações contundentes. O Padre Nosso, que Platão identificava como Uno, exige perdoar para sermos perdoados. Fixei-me em factos, deixando para as entrelinhas a identificação dos personagens inspiradores. Temperei moderadamente o cozinhado. Confio embora não o servir insonso. Advertências feitas, comecemos pois.

1.ª Reflexão  – Beber a taça de cicuta

Nada pior pode ocorrer a um líder, seja nos domínios do Estado, da cultura, ou da economia, do que perdurar com a imagem de idiota, mandrião e oportunista. A degradante fama de ter vivido, após abandonar o posto de chefia, a expensas de outrem, mesmo que de mãe caridosa, amigo incondicional, parente solicito. O sistemático pedido de dinheiro, a mentira de se afirmar autor do que não fazia, de dar-se como presente onde não estivera. A fuga a regras cívicas elementares, como o desrespeito de obrigações fiscais ou o não cumprimento da palavra dada.

Tonto ou a fazer-se passar por isso, talvez a conselho de advogados hábeis em estratagemas dilatórios e encobridores, no intuito de evitar ou reduzir a pena. Manobra sempre condenável, mas corrente em casos de ladrão vulgar, comerciante manhoso, funcionário relapso. Mas, de consequências drásticas para uma figura tida generalizadamente como referencia, pela destruição da imagem. Mesmo o que antes de bom fizera ou promovera ficará em causa. Estraga-se o curriculum.

O que teria sido para Sócrates, filósofo do séc. IV a.C., se houvesse aceite o esquema do amigo Criton fugindo a tempo de Atenas para evitar a condenação por se ter insurgido contra o poder estabelecido, mas também se haver tomado de amores por rapazes. Evitaria beber a taça de cicuta vivendo eventualmente vinte ou trinta anos mais. Contudo, perderia o respeito por si mesmo. Xenofonte não o descreveria como maioritariamente exemplar. Não se manteria, século após século, como o pai do pensamento ocidental com Platão a escolhê-lo como interlocutor em luminosas lucubrações. Também Aristóteles o não veneraria mesmo quando o contestava. Não serviria de inspiração aos estoicos romanos, como Cícero, Séneca e Marco Aurélio. No contexto da doutrina medieval, haveria sido impossível tentar cristianizá-lo por Agostinho, Aquino e Boaventura em múltiplos conceitos. Descartes não o definiria como decano da filosofia moderna. Ainda hoje recorremos com gosto ao seu nome para divulgar o exemplo de silogismo: Sócrates é homem/o homem ri (ama, chora) / logo Sócrates ri, etc.

Mal o lembramos pelos motivos negativos que levaram à condenação. Salientamos sim a postura de democrata, a par da coragem de ter sabido beber o veneno sem medo, antes sorrindo ao afirmar: fico a dever um porco ao deus da morte, no qual não acreditava, porque, como diria Platão, não é a alma a sair do corpo, mas sim a libertar-se deste como Schopenhauer o viria a aprofundar. Encarar a realidade de frente, confessar a tempo, se for caso disso, reabilita. O arguido passa de motivo de escárnio pela inverosimilhança dos estratagemas a que recorria para se tentar inocentar, a exemplo de compostura. A explanação do que realmente ocorrera torna-o alvo de comentários abonatórios. Acarreta igualmente a denúncia de cumplicidades escondidas, sob a capa de influências, na esperança de prescrições. Contribui decisivamente para uma higienização ambiental.

Pensando num personagem português contemporâneo, cabe perguntar: não haverá quem, influente junto dele, o aconselhe a confessar a tempo? Bem o poderia fazer o anterior mentor, até porque também este terá de se justificar haver deixado crescer em seu torno pelo menos oito elementos mais tarde a contas com a Justiça ou na eminência de o ser. A complacência de um homem honesto contribuindo para a projeção pública de quem o não era. Eventualmente, o contágio da maçã podre. Seja como for, como intitulei um livro, do pântano não se sai a nado.

Naturalmente, que o leitor tem o direito de acreditar, que um a um são inocentes. Logo não percebiam de onde lhes vinha o dinheiro, nem viam mal em ser instrumentos de favoritismos. Em lugar de mentores, encobridores, cúmplices ativos ou passivos, teriam a desculpa de ser mesmo tontos.

Só que nessa hipótese fica-se com o amargo de boca de pensar na tacanhez mental e mediocridade comportamental de quem nos chefiou ou representou. Lembro a historieta verdadeira de há meses num café de Campo de Ourique na capital, a dois passos da sede da editora onde ia rever provas. Sentou-se à mesa, onde tomava o pequeno almoço, sem para tanto se justificar, uma extrovertida sexagenária de classe média muito média. Tardei em reconhecê-la como ardorosa militante do MASP em 1986, quando me coubera dirigir a campanha no determinante círculo de Lisboa, estava em dúvida o êxito do inesquecível Mário Soares. Desabafou enfurecida por ter conhecido depois como líder partidário um ‘pateta alegre, preguiçoso e oportunista’, vivendo à custa alheia, recebendo dinheiro em espécie para não se saber na Banca, não lhe bastar o vultuoso crédito, que obtivera sem prestação de garantias. Era a versão, ouvida sistematicamente do próprio e seus advogados. Ofereci-lhe uma sandes, tentei em vão abrir-lhe uma janela alternativa. Não acreditava, porém, ser o personagem capaz de tamanha astúcia. Fixara-se na classificação de coitadinho. Ao trazer-me a conta, o empregado, que me conhecia, mostrou-se curioso por a encontrar chorosa. Apressei-me a evitar suposições: esta minha amiga teve um desgosto de família. Ao dizê-lo, não mentia.

Joaquim da Silva Pinto

Gestor