Restauração. “Vamos ter milhares de pessoas na rua à procura de comida”

Há empresários do setor que admitem que não têm dinheiro para pagar salários já este mês.

O tiro de partida foi dado pelo sócio-gerente d’A Padaria Portuguesa, ao admitir que a quebra de receitas das últimas semanas põe em causa o pagamento de salários a 1200 pessoas já no próximo mês. “Perante uma inesperada e abrupta quebra de faturação, pela primeira vez na história da nossa empresa, as receitas deixaram de ser suficientes para cobrir os custos operacionais e, claro, os encargos financeiros. Mantendo-se este cenário, já no próximo mês não teremos capacidade financeira para pagar salários aos mais de 1200 colaboradores”, revelou numa carta aberta Nuno Carvalho ao ministro Pedro Siza Vieira.

“Desde o dia 13 de Março que o nosso negócio teve quebras de 50% e, desde que foi decretado o estado de emergência, as quebras são superiores a 60%. Se por um lado estes números são positivos por representarem uma manifesta adesão da população à necessária quarentena, por outro lado, numa perspetiva empresarial, são números verdadeiramente desastrosos e que põem em causa a viabilidade do negócio e comprometem, já no curto prazo, a resposta aos compromissos com os colaboradores, com os fornecedores e até com o próprio Estado”, revela na mesma carta.

Mas este caso, se pode ser mais mediático, não é isolado. Ao que o i apurou há empresários do setor que admitem que já não têm dinheiro para pagar o salário deste mês aos seus funcionários. “Vamos assistir a casos graves de falta de dinheiro. Se não conseguir pagar aos meus empregados ao final do mês como é que vão ter dinheiro? Vão passar fome. Vamos ter milhares de pessoas na rua à procura de comida”, garantiu ao i o dono de um restaurante que pediu anonimato.

Um cenário que é reconhecido pela secretária-geral da AHRESP ao admitir que as medidas anunciadas até agora são muito poucas. “O problema de liquidez é visível a partir do momento em que os restaurantes foram obrigados a fechar as portas. E, tendo em conta que estamos a falar de microempresas, é natural que haja falta de tesouraria para pagar salários já daqui a uma semana”, refere ao i Ana Jacinto. 

A responsável vai mais longe e garante que as linhas de crédito anunciadas para as empresas até à data ainda não chegaram ao setor. “As empresas estão cada vez mais sufocadas e há uma necessidade urgente para que o dinheiro chegue já aos empresários do setor”. 

Para já, a secretária-geral da AHRESP fala apenas da linha de apoio dada pelo Instituto de Turismo de Portugal, no valor de 60 milhões de euros, mas que não se destina apenas à restauração. Também as agências de viagem e outras empresas ligadas ao turismo podem concorrer. “O formulário é simples e acredito que neste momento já esteja esgotado”.

Em causa estava a atribuição do pagamento do salário dos trabalhadores até 750 euros durante três meses, num máximo de 20 mil euros. Mas para isso não poderão ter dívidas nem à Segurança Social nem ao fisco.
Ana Jacinto lembra que as empresas estão encerradas por ordem administrativa e nem todas podem optar pela solução take-away. “Esta hipótese pode ser aplicada apenas por uma minoria. Nem todos os espaços têm condições ou clientes para conseguirem garantir esse serviço”, diz ao i.

Financiamento da banca

A solução apresentada pelo Governo de linhas de crédito de três mil milhões de euros – dos quais 600 milhões destinam-se à restauração e similares, com 270 milhões destinados a micro e PME – não parecem convencer os empresários do setor.

Ao que o i apurou, nem todas as empresas estão em condições de recorrer a estas linhas de crédito, já que, novamente, uma das exigências é não ter dívidas ao fisco e à Segurança Social. 
“Não posso recorrer a créditos nem a lay-off não tendo todas as situações fiscais regularizadas”, diz ao i o mesmo empresário que pediu anonimato.

Também Ana Jacinto reconhece que a maioria do tecido empresarial não está estruturada de forma a poder recorrer às linhas financeiras dos bancos. E lembra que os despedimentos que os empresários têm agora em mãos ocorrem numa altura em que estavam a pensar em reforçar a sua estrutura para a Páscoa face ao tradicional aumento de turistas nesta época.

A incerteza em relação ao futuro do seu negócio e os juros que terão de pagar pelo empréstimo pedido são algumas das razões apontadas pelos empresários do setor que os levam a ter dúvidas se deverão recorrer a essa medida. O sócio-gerente d’A Padaria Portuguesa fala em spreads de 3%, embora o primeiro-ministro diga que os juros vão variar entre 1% e 1,5% consoante a maturidade do empréstimo, que pode ir até quatro anos. E consoante o montante do empréstimo poderá beneficiar de uma garantia do Estado entre 80 a 90%, revelou António Costa em entrevista à TVI.

No entanto, há uma exigência: as empresas têm de provar que as vendas foram reduzidas, em pelo menos, 20% nos últimos 60 dias anteriores à apresentação do pedido face ao período homólogo do ano anterior.
Não é só em relação aos juros que poderão ser cobrados que Nuno Carvalho tem dúvidas. O empresário questiona todo o processo. “A burocracia que o processo de candidatura envolve?! Quando é que o dinheiro entra nas contas da empresa? Com que dinheiro pagamos as contas até lá?!”.

Numa proposta a um empresário do setor, a que o i teve acesso, é exigido que a empresa apresente uma situação líquida positiva no último balanço aprovado; se tiver situação líquida negativa no último balanço aprovado, poderá aceder à linha caso apresente esta situação regularizada em balanço intercalar aprovado até à data de enquadramento da operação.

Ao mesmo tempo, é exigido que não tenha incidentes não regularizados junto da banca e que tenha a situação regularizada junto da administração fiscal e da segurança social à data da contratação do financiamento.
Terá ainda de apresentar uma declaração explicitando os impactos negativos do surto da covid-19 na sua atividade económica que fundamentam a necessidade específica de obtenção de financiamento no âmbito desta linha de crédito.
 
Despedimentos

A Associação para a Defesa, Promoção e Inovação dos Restaurantes de Portugal avisa que mais de metade dos trabalhadores do setor da restauração pode ser despedida nos próximos meses. A entidade considera que muitos empresários vão ter que dispensar trabalhadores porque não sabem quanto tempo vai durar esta crise. Com os restaurantes de portas fechadas, o presidente da PROVAR, Daniel Serra, diz que o futuro é imprevisível.

Já Ana Jacinto admite que a situação poderá ser mais grave do que a que se viveu em 2013, um ano depois do aumento do IVA no setor. De acordo com as suas contas, entre 2008 e 2013, o setor perdeu 30 mil postos de trabalho, que só foram recuperados com a reposição do IVA em julho de 2016.

Também a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) não tem dúvidas: este período poderá levar a despedimentos no setor. “No período de intervenção da Troika fizemos um esforço para manter os postos de trabalho; ficando fora da linha de crédito, temos de atuar de outra forma”, considera João Vieira Lopes, revelando que há 220 mil trabalhadores afetos à distribuição alimentar.