Cuidado com a Páscoa: Interior e Algarve com maior risco

Férias da Páscoa e chegada de emigrantes fazem soar os alarmes: casos importados quase quadruplicaram na última semana. Portugal deverá chegar nos próximos dias aos 10 mil casos. Marcelo muda o tom: ‘Não vale a pena estragar o esforço pelo prazer da Páscoa em família’.

Evitar ao máximo uma epidemia descontrolada. É o objetivo, mas conseguiremos? O cenário crítico que se vive em Itália repetiu-se em Espanha, onde os especialistas admitem que a tragédia possa vir a ser maior. Nos últimos dias, em Portugal, os casos dispararam. O ritmo de crescimento dá sinais de abrandamento: depois de um crescimento exponencial na casa dos 40%, baixou para 20%. Mas comparando a epidemia com outros países, ao 25.º dia após os primeiros doentes Itália tinha 10 mil casos confirmados – Portugal chegou esta quinta-feira aos 4500, mas tem seis vezes menos habitantes. Em Espanha eram 2000. Com sinais de que a ‘mola’ esteja agora a ser pressionada – a expectativa é que se comecem a consolidar o impacto de medidas como o fecho de escolas e o confinamento de milhares de portugueses em casa – a diretora-geral da Saúde admitiu esta sexta-feira que o pico pode chegar não em abril mas em maio, com o número total de novos casos a estabilizar nessa altura, o que implicaria no entanto que as atuais medidas se prolonguem pelo menos até a esse mês. Mas no terreno cresce a ideia de que só quando os testes forem mais generalizados – o que começou a acontecer apenas nos últimos dias – será possível ter uma imagem mais objetiva do grau de transmissão da doença no país. Esta semana, com a entrada da resposta nacional em fase de mitigação, passou a haver indicação para testar todas as pessoas com sintomas de tosse, febre e dificuldade respiratória e é esperada a chegada ao país de 280 mil kits.

Há, no entanto, preocupações latentes. O multiplicar de casos em lares é um dos fatores que pode influenciar a trajetória de casos no país, assim como os comportamentos da população nos próximas dias. E as férias da Páscoa, que começariam nesta próxima semana, fazem soar os alarmes, sobretudo depois da chegada ao país de centenas de emigrantes, muitos vindos de França ou Suíça, onde também já existe transmissão comunitária da doença. O Presidente da República, que durante a semana tinha mostrado maior otimismo dentro do momento crítico que o país atravessa, assumiu a preocupação e foi direto no apelo: «Não vale a pena estragar aquilo que tem sido o esforço destas semanas pelo prazer de gozar esta Páscoa em família».

Casos importados quadruplicaram

O receio de que a entrada de milhares de emigrantes no país sem que a população adira toda ao isolamento social possa comprometer a tentativa de abrandar a epidemia cresceu nos últimos dias, sobretudo nas autarquias e hospitais do interior, até aqui mais imunes à doença já que os primeiros casos foram detetados no litoral e a zona do Porto continua a ter o maior número de doentes. Num hospital da Beira Baixa, um dos primeiros casos confirmados foi de um emigrante que regressou ao país vindo da Suíça, já com sintomas, explicou ao i fonte hospitalar. «As pessoas regressam e querem estar com a família, ir tratar de assuntos, ir aos bancos», disse ao SOL um médico, assumindo que é uma das principais preocupações.

As autoridades de saúde do norte e do Algarve, assim como alguns municípios, avançaram com a imposição de isolamento profilático por 14 dias a quem chega de fora, mas as decisões regionais foram postas em causa pela provedora da Justiça. A DGS anunciou a suspensão temporária sublinhando a competência das autoridades de saúde numa emergência sanitária, mas até ao fecho desta edição não havia uma orientação clara – com autarcas do norte e a Comunidade Intermunicipal Viseu-Dão Lafões a exigir esclarecimentos e a temer o pior. «Cada dia que passa pode ser um dia irrecuperável para travar a progresso desta pandemia», apelou. Os boletins diários da DGS permitem concluir que desde o final da semana passada, já com os países a viver o estado de emergência e uma quebra no turismo, os casos importados quase quadruplicaram, havendo um aumento sobretudo dos casos ligados a Espanha e França, agora 105 e 72. Mas também da Suíça contam-se agora 22 casos importados no país.

Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, admite que a revogação das decisões das autoridades de saúde gerou perplexidade numa fase que é considerada crítica para a epidemia. O especialista alerta no entanto que há outros movimentos a causar apreensão, como pessoas que pensam aproveitar o período de férias para ir para o Algarve. «Tenho os meus colegas do Algarve muito preocupados porque há pessoas a fazer esse caminho, alguns relataram até situações de pessoas que viajaram de transporte e com sintomas». O Ministério da Administração Interna anunciou entretanto que será reforçado o controlo e reiterou que não são permitidas viagens em lazer.

Por outro lado, o MAI ordenou também reforçar o controlo nas fronteiras terrestres com Espanha, até para evitar que espanhóis suspeitos de estarem infetados com o coronavírus tentem aceder aos hospitais portugueses, como há já vários relatos, incluindo fazendo-se transportar em automóveis com matrícula portuguesa – face ao colapso do sistema de saúde espanhol.

Ricardo Mexia considera também que nos últimos dias houve uma mensagem pouco coerente à população quando devia haver um esforço mais claro de pedir às pessoas para saírem apenas de casa em situações excecionais. «Implementaram-se um conjunto de restrições mas com exceções tão detalhadas, do passeio higiénico ou para fazer exercício ao ir passear o cão que as pessoas o interpretaram de uma forma que foi ‘se posso fazer isto, então vou fazer. Pessoas que não faziam exercício há 10 anos acharam que agora era a altura de começar a fazer caminhadas ou ir ao parque». A situação vulnerável nos lares e celebrações próprias da Páscoa, sobretudo no interior, são outro fator de preocupação, alerta o médico, lembrando que existe a agravante de ser uma população particularmente envelhecida, quando a epidemia em Portugal começou por afetar pessoas mais jovens – e, pelo mesmo motivo, se a taxa de mortalidade tem sido relativamente baixa, o cenário deverá agravar-se nos próximos dias. Esta semana a Vaticano emitiu orientações para a semana santa nos país mais afetados, pedindo que não sejam feitas celebrações que congreguem muitas pessoas presencialmente, nem procissões, incluindo o compasso, nem o tradicional lava-pés na quinta-feira santa.

Mesmo que seja mais leve, vai ser duro

Com tantas variáveis que podem influir na trajetória da epidemia, as previsões a longo prazo vão-se tornando mais difíceis. Óscar Felgueiras, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que tem trabalhado na modulação da epidemia, considera que a situação nos lares e os casos importados são os fatores mais preocupantes. E nos lares a preocupação não se coloca apenas pelos idosos: «Têm idosos e funcionários. Os primeiros em grande risco pela sua vulnerabilidade, os segundos a poderem potencialmente propagar a transmissão. Quanto aos casos importados, não nos podemos esquecer de que somos vizinhos de um país que tem uma das situações mais descontroladas a nível mundial. A Espanha está com uma taxa de letalidade nos 7,7% e Portugal com 1,7%. A manutenção dos fluxos migratórios é de momento um claro fator de risco», diz. O matemático sublinha que o abrandamento do aumento de novos casos, para manter-se, irá depender do esforço da população para continuar a tomar todas as medidas de precaução e, eventualmente, medidas adicionais do Governo.

Na próxima semana, diz, uma previsão com alguma segurança indica que o país chegará aos 10 mil casos confirmados, não sendo ainda o pico, pelo que a pressão sobre os recursos de saúde será crescentes. Esta semana, investigadores do Imperial College London publicaram diferentes cenários para o país: o mais leve, se medidas de supressão precoces fossem eficazes e reduzissem os contacto interpessoais em 75%, estima 600 mil pessoas infetadas e 3800 mortes, com a necessidade de mais de 1300 camas de cuidados críticos no pico. Óscar Felgueiras considera que este cenário é aproximadamente o expectável, fazendo a ressalva: estima-se que 80% das pessoas infetadas seja assintomática: «Uma parte significativa da população virá a ser infetada sem ter sintomas ou conhecimento e mesmo muitos dos que tiverem sintomas não chegarão a ser testados. Creio que quanto ao número de mortes ainda existe a possibilidade de ser algo inferior. Foram tomadas medidas relativamente precoces, mas muito do que aí vem ainda depende de nós», alerta. E o embate nas próximas semanas será sempre duro, assim como a recuperação.