Reflexões quaresmais

Ator consagrado no enredo teatral, que ele próprio escrevera. Como D. Afonso Henriques, demonstrava saber o que queria..

2.ªReflexão. Cartas do baralho

Superdotado segundo alguns, inteligência muito acima da media no reconhecimento de todos. Filho de político influente excedera o pai em mérito e ambição. Universitário, ensaísta, leitor compulsivo. Relevante capacidade de comunicação, entremeando a habitual euforia com períodos de meditação próprios de intelectual. Simpático, divertido, demonstrando amor pela vida, algum receio face à doença, mas quase misticismo em relação à morte. Desaires familiares, políticos, jornalísticos superados, porque a crise inspira alternativa. Resiliência, quase teimosia. Orgulho sob a capa de trabalhada humildade. Amor pelo próximo sem o esconder porém. A mão direita a conhecer o que dá a esquerda, contrariamente ao que Cristo recomendara por não ser político. O comportamento original de quem se toma como ungido.

Chegara ao topo da pirâmide, após uma paciente conjugação de carreira universitária com analise política de grande impacto. Pedagogia intencional numa programação estratégica. Enorme auto confiança. As sondagens a confirmarem-lhe, sem quebra, a popularidade. Passara anos a beijar, em feiras e arruadas, mulheres e crianças. Abraçara ricos e pobres. Aceitara familiaridades da parte de cidadãos anónimos, que viam nas suas qualidades motivo de resguardo, a par de nos defeitos encontrarem identidades de conduta. Preleções didáticas guardadas para as devidas ocasiões. No dia a dia, o comentário breve, se conveniente com recurso ao lugar comum. Dizia de preferência o que sabia agradar a quem tinha em frente. Ignorava a critica sob inconsistência de comportamento com a convicção de que se tratava de adaptabilidade. Ator consagrado no enredo teatral, que ele próprio escrevera. Como D. Afonso Henriques, demonstrava saber o que queria.

Exceção agora na dúvida se devia ou não continuar na cadeira do poder. Alguns comentadores superficiais viam nisso a astúcia de quem se fizesse rogado para mais ser apetecido. Contudo, estava, uma vez por todas, a ser sincero para consigo mesmo e todos os demais. Não que lhe restassem dúvidas sobre a vitoria se preferisse o repto de prosseguir. O oponente da direita, por mais contundente que fosse a sua postura critica, jamais ultrapassaria os 25% de votos. A esquerda panfletária mais o candidato formal do decrescente PCP, nem a tanto chegariam. Seria pois para ele uma vitória à primeira volta, talvez frouxa mas eficaz. Ou então, daria lugar a um resultado esmagador, quando tivesse de defrontar, na continuação do processo eleitoral, um só rival. Hipótese, apesar disso indesejada, porque o forçaria a perder o estatuto de pai de todos, que correspondia ao perfil de rei. O motivo de perplexidade era outro.

Melhor ou pior, no entender de cada qual, fizera o percurso do avalista de uma realidade política complexa, o que assegurara estabilidade, mesmo quando o governo e sua bizarra base parlamentar de apoio, representavam o gérmen da instabilidade. Aceitara que em Portugal essa gente dissesse o contrário do que afirmava em Bruxelas. Suportara ser ultrapassado ou deficientemente ouvido. Tolerara desacertos, incongruências, omissões e atrasos. Assumira o papel do paráclito onde devia ter sido árbitro.

Contudo, mantivera com isso para o país uma fachada de progresso em paz social. Mesmo que a ausência de reformas de fundo, que tinha como desejáveis, nalguns casos fundamentais fizesse desse êxito uma fantasia. O triste consolo de ficarmos à frente dos três últimos países da União Europeia em termos de investimento e qualidade de vida. Apesar dos apoios externos, da correta saída anterior do resgate imposto pela vontade dos credores e a necessidade de não pôr em risco a moeda comum. Encontrava na ausência de uma vigorosa e esclarecida oposição de direita e centro sócio-liberal a desculpa para não ter podido arbitrar. Contudo, complexos do passado levavam-no a preferir descartar-se do anátema da evolução na continuidade conservadora. Conhecia por remanescência a letra desse fado. A conceção agostiniana, lembrada em anterior reflexão, da força do presente/passado.

A continuidade no poder acarretaria encontrar um contexto diferente, interlocutores distintos, a geração de noventa a impor novos objetivos, métodos, ambições e alianças. Seria o cidadão de setenta e tal anos capaz de um permanente, às vezes desgastante, esforço de envelhecimento ativo, mesmo que jovem de espírito, saudável quanto baste, voluntarista? Em alternativa, a comodidade de fechar as contas com saldo positivo. Livros para escrever conferências a convite de múltiplos círculos em Portugal e no estrangeiro, missões especificas de Estado. A imagem do venerável, o exemplo do desprendimento. Todavia, a subjacente reação insubmissa do campeão, que gosta de se testar a si mesmo. A adrenalina resultante do jogo de soma nula. Ganhar ou perder.

Pouco dado a seguir sugestões, desconfiava da imparcialidade de quem o aconselhasse. Numa circunstância destas todos acabam por não esquecer o seu próprio interesse. Sem deixarem de ser leais resultam suspeitos. A escolha teria de ser assumidamente sua. Alguém, porém, lhe veio dar a conhecer uma perturbadora conversa que mantivera com Mário Soares, durante um almoço nas vésperas da grave doença causadora da lamentável alteração final do comportamento democrático daquele. Viera à tona o mau resultado da pretendida terceira eleição para a Presidência da República, em que o interlocutor se recusara a participar, contrariamente ao ocorrido nas vezes anteriores. Comia Soares com o apetite habitual. Contudo entristeceu-se ao confessar: sabe que só a meio da campanha percebi que faltavam cartas ao baralho?

Metáfora com conteúdo de recomendação. A prudência implica até biblicamente a contagem das armas de que se dispõe, apesar de na altura decisória se acreditar no fator sorte. Todavia, não seria preferível, que acima do taticismo político, se pensasse no melhor que resultaria para o país? Confiemos que seja esse objetivo a presidir à opção.

por Joaquim Silva Pinto

Gestor​