Bolton. Os Homens do regimento

Um caso único na história do futebol mundial. Toda a equipa do Bolton alistou-se e partiu para a frente durante a II Grande Guerra.

Nessa soturna tarde de 8 de abril de 1939, Harry Goslin entrou em campo encabeçando, como sempre, os seus companheiros do Bolton Wanderers, mas desta vez não havia nem alegria nem sorrisos, nem nos jogadores nem nas bancadas. Com um microfone na mão, Goslin iniciou um discurso que, a pouco e pouco, foi fazendo crescer lágrimas nos olhos dos 23 mil adeptos que enchiam Burnden Park: «Esta não é uma tarefa que se possa deixar em mãos alheias. Cada um de nós tem um destino a cumprir. Por isso decidimos alistarmo-nos no exército e combater pela liberdade da Europa e do mundo!».

Mais ainda do que hoje não era tempo para brincadeiras. Mesmo que a velha canção francesa Marlbrough s’en va-t-en Guerre continuasse a recordar as façanhas de John Churchill, 1.º duque de Malborough, essa extraordinária figura que marcou os equilíbrios e desequilíbrios militares do continente nos finais da década de 1600 e início de 1700. Os valentes jogadores do Bolton iriam merecer plenamente serem incorporados na epopeia que levou como título The Death and Burial of the Invincible Marlbrough. E Harry Goslin acima de todos eles.

Nascido no dia 9 de novembro de 1909, em Willington, iniciou a sua carreira como defesa do modestíssimo Boots Athletic, um clube de Nottingham, até que o histórico treinador do Bolton, Charles Foweraker, o contratou pela redonda conta de 25 libras esterlinas. Depois do comovente discurso de Burnden Park, toda a cidade o tomou como um herói, um homem acima dos medos, poço inesgotável de coragem. Ao fim ao cabo, aquilo que também fora dentro de campo com a camisola dos Wanderers.

O 53.º regimento da Bolton Royal Artillery recebeu com satisfação e pompa os jogadores do Bolton, juntando-os a todos numa nova equipa, desta vez sujeita ao perigo do inimigo e não às ameaças dos adversários. Um episódio único e marcante de camaradagem e valentia de uma guerra detestável. Os treze destemidos merecem que os seus nomes sejam recordados para sempre: Don Howe, Jackie Roberts, Walter Sidebottom, Ray Westwood, Jack Hurst, Ernie Forrest, Stan Hanson, Tommy Sinclair, Danny Winter, Albert Geldard, George Catterall, Jimmy Thompson e Billy Ithell. O décimo quarto, ou melhor, o primeiro dos treze, foi Goslin. O mais decidido e infeliz de todos.

Um único morto
A vontade desta rapaziada de Bolton em sair em defesa da pátria foi de tal forma entendida como uma obrigação comunitária que Syd Jones e Charlie Hanks, os dois mais jovens jogadores da equipa, viram a sua integração militar recusada por serem demasiado jovens. O avançado-centro Nat Lofthouse não se juntou aos camaradas do 53.º. Foi recrutado para trabalho de colocação de minas.

As palavras de Goslin não se limitaram a ecoar nos ouvidos daqueles que repartiam com ele o balneário nesse ano de 1939. Tornaram-se um lema do clube, digno de um filme épico que parece estar à espera de ainda ser rodado. Nos anos seguintes, um total de 32 jogadores do Bolton alistaram-se e combateram na II Grande Guerra.

«Marlbrook the Prince of Commanders/Is gone to war in Flanders/His fame is like Alexander’s/But when will he ever come home?/Mironton, mironton, mirontaine», cantavam os resolutos moços de Bolton enquanto marchavam de frente para uma morte adivinhável. Quando voltaremos a casa?, perguntavamà medida que iam cantando ao longo de um caminho que talvez não tivesse regresso.

O Destino tem caminhos muito mais ínvios do que aqueles que atribuem a um Deus omnipotente e omnipresente, senhor do céu e da terra. Dos tais 32 jogadores do Bolton que se ofereceram para combater contra o lixo nazi, apenas um não chegou vivo à hora da rendição incondicional de 1945. Se pensou no nome do capitão Harry Goslin é porque entende bem as manigâncias infames desse ditador infame que rege a orquestra da morte e da vida.

Goslin era capitão em Burnden Park mas tenente por via da sua promoção após a retirada de Dunquerque onde demonstrou cabalmente a sua temeridade. Curiosamente, depois disso, ainda teve tempo para disputar um encontro de futebol amigável entre a Inglaterra e a Escócia enquanto a sua companhia esperava por novas ordens, estacionada em East Anglia. As ordens não tardaram a chegar. No verão de 1942, o 53.º regimento viajou para o Egito e envolveu-se nas batalhas de defesa das posições de Alam el Halfa. Depois continuou a marcha, primeiro em direção a Kirkuk e, em seguida, para Kifri. A equipa doBolton continuava junta no Norte de África. E até bateu sem espinhas um conglomerado de soldados polacos por 4-2. Não tinham perdido o jeito nem a vontade de vencer, de vencer sempre.
A guerra estava a caminho do fim. O 53.º tinha, agora, novas ordens: integrar-se no movimento de Invasão da Itália através de Taranto e Foggia. A batalha do rio Sangro deu aos Aliados uma vantagem considerável. Tudo parecia correr bem para os heróis do Wanderers. Mas não sairiam de Itália sem que a Senhora da Gadanha invadisse a sua privada camaradagem conquistada em tantos e tantos campos de futebol numa fraternidade inquebrável.

No dia 14 de dezembro de 1943, os alemães replicaram com violência. Um projétil de morteiro atingiu a árvore na qual Harry Goslin montara o seu posto de vigilância. Com a espinha perfurada por estilhaços e por pedaços de madeira lutou pela vida na cama de um hospital de campanha até ao ponto mais alto de toda a resistência. Dois dias depois a morte levou-o. «He’s dead! He’s dead as a herring!/For I beheld his berring/And four officers transferring/His corpse away from the field».

O regresso
Na volta vieram todos menos Goslin. E regressaram aos campos de futebol. Em maio de 1945, os soldados do 53.º entraram em campo para disputarem a primeira mão da final da Northern Football League War Cup, frente ao Manchester United. Várias dezenas de prisioneiros alemães tinham como função manter a limpeza do estádio e, sobretudo, das bancadas que voltaram a ficar repletas da velha alegria que costumavam ter. OBolton Wanderers venceu por 1-0. Depois empatou em Old Trafford por 2-2. Não se tinha esquecido do segredo das vitórias.

Antes do jogo começar, toda a equipa doBolton perfilou-se no centro do terreno, precisamente no local onde, seis anos antes, Harry Goslin tinha agarrado no microfone para declarar que iriam partir para a guerra como era o seu dever. Um silêncio arrepiante toou conta de Burnden Park, interrompido, aqui e ali, pelo som de soluços que se soltavam de gargantas emocionadas. Goslin ficara longe, enterrado no cemitério de Sangro River. Mas estava ali, como sempre, preso ao coração daqueles que o amaram.