Mécia de Sena. A mulher que velou pelo poeta

Desde a morte de Jorge de Sena que Mécia de Sena tomou para si a tarefa de zelar, promover e deixar para a posteridade a força do trabalho do poeta.

A vida durou-lhe um século e mais meia dúzia de dias, mas há coisa de uma década que Mécia de Sena, por força da idade, de maleitas e de circunstâncias familiares, vivia num limbo muito diferente daquele que tinha habitado outrora e no qual era conhecida pela sua argúcia e proatividade. A escritora e viúva de Jorge de Sena, que dedicou a vida a proteger e divulgar o legado do marido, morreu ontem, dia 28 de março. Nascida em Leça da Palmeira, em 16 de março de 1920, Mécia de Freitas Lopes tinha completado 101 anos dias antes da sua morte. A escritora morreu em Los Angeles, Califórnia, onde vivia há largas décadas.

“Uma mulher ímpar, corajosamente à altura dos imensos desafios de uma vida intensa, que atravessa as mudanças sociais, políticas e culturais de grande parte do séc. xx, quer em Portugal, quer no seu longo exílio no Brasil [1959-1965] e nos Estados Unidos da América”, destaca a investigadora Maria Otília Pereira Lage, na obra Mécia de Sena e a escrita epistolar com Jorge de Sena: Para a história da cultura portuguesa contemporânea, citada pela Lusa.

Mécia casou-se com Jorge de Sena em 1949, numa altura em que ele era um engenheiro civil da Junta Autónoma das Estradas, e acompanhou-o em todos os exílios. Vinha de uma família ligada às letras e à música – o pai foi o compositor Armando Leça, investigador do Cancioneiro Musical Popular Português, e o irmão, o crítico e historiador Óscar Lopes -, tinha-se formado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e era ainda detentora do curso do Conservatório de Música do Porto, tendo sido, até ao casamento, professora.

Depois passou a ser “colaboradora literária” de Jorge de Sena, afirmava o próprio, segundo a mesma obra. Jorge de Sena morreu também em Santa Bárbara, ainda não tinha 60 anos, e, a partir daí, Mécia de Sena encetou a difícil tarefa de zelar, editar e divulgar o espólio do poeta, bem como as obras que tinham ficado inéditas.

Jorge Fazenda Lourenço, professor e especialista na obra de Jorge de Sena, manteve durante largos anos um próximo “contacto epistolar” com Mécia de Sena e é porventura uma das grandes testemunhas desse trabalho que Mécia desenvolveu após a morte de Jorge de Sena. Jorge Fazenda Lourenço e Mécia de Sena conheceram-se pessoalmente quando ela veio a Portugal, em 1984. “A partir desse ano, e de uma forma gradual, como numa relação que se vai construindo e crescendo, fui ficando seu colaborador cada vez mais próximo. E temos uma longa correspondência. Em 1988, a Mécia desafiou-me a ir para Santa Bárbara trabalhar no espólio do marido e estudar na Universidade da Califórnia, onde estive cinco anos. E, aí, a nossa cumplicidade aprofundou-se, num contacto afetivo, quase quotidiano”, contou o professor, estudioso e coordenador-editor das Obras Completas de Sena (até 2016), numa entrevista ao i o propósito dos 40 anos do desaparecimento do poeta. Não falavam desde 2015. “Numa das nossas últimas conversas, recordando os nossos mais de 30 anos de colaboração, Mécia de Sena falou-me de ‘como nos tínhamos feito um ao outro’. Até que, em meados de 2015, começaram a surgir barreiras à comunicação impostas pela família. Mécia de Sena estaria num processo de demência, desencadeado ou acelerado por uma queda numa época de Natal. Entretanto, a família obtém a sua interdição legal, considerando-a incapacitada para a condução da obra e não oferecendo qualquer mediação aos seus amigos, mesmo aos mais chegados. Um corte. Abrupto. Cruel. Como quem apaga alguém. Para sempre”.