O bairro sem covid-19

À janela de um prédio, duas senhoras de idade vão dialogando de um andar para o outro, com a que está mais perto da rua a dizer para a outra que ninguém a pode impedir de ir dar um passeio. Na bomba de gasolina a caminho do jornal e quando regresso a casa, vejo vários…

No meu bairro a vida começa a voltar à normalidade, apesar de algumas diferenças: sem dinheiro a entrar na caixa são vários os cafés e restaurantes que decidiram abrir portas para vender take-way. As soluções para evitar o contágio direto são bem engenhosas: num dos cafés, construiu-se uma espécie de chapéu de plástico até um metro e pouco do chão, por onde passam os produtos, como cafés e cervejas. Noutros, usam-se mesas e cadeiras para afastar os clientes do balcão.

No supermercado, de média dimensão, os empregados da caixa não têm qualquer proteção, salvo raras exceções, e mesmo o ‘porteiro’, bem como o gratificado da PSP, também não usam máscara ou luvas. Há, agora, um número limite de pessoas que podem estar ao mesmo tempo no interior, mas os clientes passam a centímetros uns dos outros. Cá fora, na peixaria, charcutarias/padarias e na loja de legumes e frutas uns cumprem alguma distância, outros não.

À janela de um prédio, duas senhoras de idade vão dialogando de um andar para o outro, com a que está mais perto da rua a dizer para a outra que ninguém a pode impedir de ir dar um passeio. Na bomba de gasolina a caminho do jornal e quando regresso a casa, vejo vários amigos a beberem café e a fazerem ‘sala’ ao lado da caixa de pagamento. Será isto normal? Se eu fosse sueco, diria que sim. Se fosse espanhol ou italiano diria que não. Certo é que as pessoas que ficaram sem rendimentos decidiram ir à luta: «O que nos resta? Ficar em casa sem dinheiro ou tentar faturar, apesar de estarmos numa espécie de bunker, a servir os clientes», questionava-me um dos ‘regressados’.

Penso que neste momento crítico em que o dinheiro começa a escassear, as pessoas optam por estas decisões, até porque acham que em Portugal não se vai passar o mesmo que acontece em Espanha ou na Itália, onde, em meio dia, morrem mais pessoas do que aquelas que faleceram em Portugal desde que começou a pandemia.

É esse sentimento, altamente perigoso, que está a levar as pessoas nos bairros a tentar voltar à normalidade. Ali a polícia não lhes pode dizer grande coisa pois conseguem sempre alegar que saíram de casa para ir às compras. 

Mas o que dizer dos milhares de automobilistas que ontem ao final do dia saíam de Lisboa rumo ao Algarve, apesar dos vários pedidos e avisos do Governo e das autoridades policiais para não o fazerem? Somos um povo desenrascado e se nos dizem que a partir de amanhã não podemos sair, então o melhor é aproveitar hoje para o fazer. 

P. S. Prato é uma localidade italiana em que um quarto da população é chinesa. Como tem sido frequente, a comunidade foi alvo de atitudes xenófobas, mas, surpreendentemente, é em Prato que há menos infetados com a covid-19. Porquê? Porque os chineses que foram festejar o novo ano à China, quando regressaram a Itália sujeitaram-se a uma quarentena imposta pelos próprios. Dessa forma, foram poucos, comparativamente, os que ficaram infetados com o vírus. 

Já na região da Sicília, o Governo viu-se obrigado a enviar a tropa para impedir os assaltos a mercearias e supermercados, pois são cada vez mais os ‘esfomeados’ que não têm dinheiro para comprar alimentos. Na Ásia, as forças policiais agridem brutalmente aqueles que procuram algo para comer. Será possível o mundo continuar muito mais tempo fechado, com as economias quase paralisadas – para os mais desfavorecidos – sem grandes convulsões sociais? Não me parece.

 

P. S. 2. O que será de algumas famílias que vão receber os 1200 reclusos que vão ser libertados das prisões portuguesas? Se nuns casos será uma alegria, noutros, calculo, será um inferno. Afinal, as feridas recentes podem não estar devidamente saradas e pode estar-se a contribuir para o aumento de violência doméstica. Não seria melhor perguntar a todos os envolvidos se essa será a melhor solução ou se devem ser transferidos para outros locais preparados para o efeito? 

vitor.rainho@sol.pt