Ronaldinho Gaúcho. Mago dos relvados e pelintra fora deles

Há um mês que Ronaldinho Gaúcho está preso no Paraguai, depois de ter entrado no país com documentos falsos. A defesa diz que o antigo jogador é uma peça menor numa engrenagem complexa. Entretanto, o craque passa os dias a jogar à bola, só come refeições trazidas de fora e começou a dedicar-se à carpintaria.

Numa altura em que nas catedrais do desporto rei toca um silêncio de cemitério, o mais garrido no estilo, a súmula ostensiva do que a nação canarinha fez com a bola nos pés, encontra-se também confinado, e parece que, até há dias, nem queria saber da bola. Logo ele, que incredulamente vimos sempre ser farejado e seguido pela bola, provando o que disse Nelson Rodrigues, que há na bola uma alma de cachorra, ainda que só alguns astros iluminem esse ângulo tão particular. O cronista insuperável anotava que «a bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque». E que desastre foi preciso para quebrar essa cumplicidade entre ela e Ronaldinho Gaúcho? Há quase um mês numa prisão de segurança máxima no Paraguai, foi ali que o maestro do drible fez 40 anos, no passado dia 21, rodeado de um sortido de criminosos que vai de homicidas e altas patentes militares e do crime organizado a figuras públicas envolvidas nos habituais esquemas com que o privilégio cospe na cara do resto do mundo. Tramado pela pandemia, o antigo astro tem à perna um imbróglio de todo o tamanho com a justiça daquele país, depois de ter atravessado a fronteira com um passaporte falso para participar nalgumas ações de beneficência com jovens e marcar presença no lançamento de um livro e na inauguração de um casino. Ronaldinho tem o irmão mais velho, Roberto Assis, ex-jogador do Sporting, preso na mesma cela, e deram-se como culpados de falsificação de documentos, garantindo, no entanto, que estes lhes foram entregues por um empresário brasileiro que tratou da viagem, e que não faziam a menor ideia daquilo em que se estavam a meter. Se o Ministério Público paraguaio inicialmente nem quis formalizar a acusação, a coisa cheirou a esturro a um juiz, que acabou por forçar o processo a seguir nos eixos, e foi então que se iniciou a investigação a um esquema envolvendo funcionários públicos e elementos do setor privado, e que vai muito para lá da falsificação de documentos, com as suas ramificações a abrangerem uma operação de branqueamento de mais de 400 milhões de dólares e que terão origem no tráfico de drogas. Ronaldinho, que por enquanto mantém o cargo como Embaixador do Turismo do governo de Bolsonaro, nem com o apoio público das autoridades brasileiras conta. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, ligou para saber do que ele era acusado, e conseguiu das autoridades do país vizinho a garantia de que estava seguro, mas, quanto ao resto, a intenção do governo brasileiro é não intervir. O problema é que, desde que estão fora das quatro linhas, têm tido dificuldade em acertar com as regras, e não passa muito tempo sem que outra acusação, seja de construções irregulares em zonas de preservação ou esquemas de pirâmide envolvendo criptomoedas, venha ensombrar os tempos de glória daquele que foi por duas vezes considerado o melhor do mundo. Se a coisa esteve para se descomplicar, se é certo que Ronaldinho não é mais que «uma peça menor» numa engrenagem complexa, o seu advogado, apesar de estar optimista, e seguro de que as investigações irão comprovar de que o seu cliente não não tinha noção daquilo em que se estava a meter, já fez saber que «a emergência sanitária para evitar a propagação do coronavírus vai retardar tudo». Por estes dias, o jogador que vestiu a camisola de clubes como o PSG, Barcelona, AC Milan ou Flamengo, está a ser lembrado dos gozos simples de miúdo, como um passarito que se esquece da gaiola e precipita toda uma ária num gorjeio, e já circulam imagens dele a jogar no recreio da cadeia de Assunção, e com a febre do drible veio o sorriso rasgando quem quer que quisesse meter-se entre ele e a bola, e o ânimo terá voltado à medida que as circunstâncias o fazem esquecer o mítico número 10, para se habituar ao número 194, que passou a ser aquele que o identifica como recluso. Mas mesmo atrás das grades, esse espantoso talento que o viu destacar-se com apenas 7 anos nas camadas jovens do Grémio, então ainda na modalidade de futsal, não lhe tirou a graça lancinante com que se espalham num descampado putos tão mortais e ali ficam ferindo a orgulhosa indiferença dos deuses até fazerem deles adeptos. Sinal disso mesmo é o facto de o número de visitas à prisão ter disparado desde que o craque ali chegou. E mesmo dessas lendas que se semeiam e crescem à sombra das chuteiras já se colheu um episódio que dará um belo capítulo, quando o biógrafo contar como o antigo número 10 recebeu a visita do antigo capitão da seleção paraguaia que passou pelo Benfica, Carlos Gamarra, que levou o neto de seis anos para conhecer o seu ídolo, e que ficou surpreendido ao chegar às instalações da Agrupação Especializada da Polícia Nacional do Paraguai, deparando-se com uma fila de 50 miúdos que foram em excursão, acompanhados pelos pais, para conseguir um autógrafo do campeão mundial de clubes e seleções. Ronaldinho era outra vez aquele sorriso imenso a tirar fotografias com os fãs, e, por esta altura, já goza das mesmas regalias que qualquer outro dos detidos VIP, e apenas se queixa do calor e dos mosquitos. Depois de um período de jejum, tendo-se recusado a comer o que servem no refeitório da cadeia, agora Ronaldinho já só ferra o dente no que lhe trazem de fora e além de passar boa parte do dia a jogar à bola, parece que se iniciou na carpintaria. Os dias passam, e se não está livre de complicações e o futuro permanece incerto, Ronaldinho estava inquieto sobretudo porque não conseguia falar com a mãe. Dona Miguelina Elói Assis, pela alegria e magia que ajudou a devolver aos relvados, não está longe de integrar o altar dos mais fervorosos adeptos brasileiros, e, em 2012, quando se debatia com um cancro, viu a torcida do Atlético Mineiro erguer uma faixa em seu nome. Do mesmo modo, em setembro passado, quando o clube ofereceu a Medalha de Mérito ao filho, esta contemplava também a mãe, que por estes dias não se deita sem saber como os filhos passaram o dia na prisão, como se a chamada, em vez da longa distância, cruzasse o tempo, para ir saber deles ao recreio.