Crónica de uma oportunidade perdida

 Tivemos oportunidade de clonar boas práticas e evitar a repetição de erros alheios. Infelizmente, seguimos os passos de Itália e Espanha

É evidente que nenhum país poderia estar preparado para a dimensão e as consequências do surto de covid-19. Portugal não será exceção. Mas em relação a outros, beneficiamos da vantagem relativa do exemplo. Assistimos de longe ao que acontecia. Tivemos oportunidade de clonar boas práticas e evitar a repetição de erros alheios. Infelizmente, seguimos os passos de Itália e Espanha. E agora é como se vê. 

A cronologia é, nesta avaliação, essencial. O covid-19 foi declarado Emergência de Saúde Pública Internacional pela Organização Mundial de Saúde, no dia 30 de janeiro. O vírus já se encontrava em vários continentes e, na UE, em países como a França, a Alemanha, o Reino Unido ou a Finlândia. Também é fundamental ter presente que esta declaração só acontece perante «uma situação extraordinária que constitua um risco de Saúde Pública para outros Estados», devendo o surto ser «sério, repentino, incomum ou inesperado». Este teria sido o momento para agir de forma decisiva e eficaz. 

Mas qual foi a atitude das autoridades portuguesas? Em vez de prevenção e da exigência, adotou a narrativa desvalorizadora de que a gripe matava mais gente e o SARS, sim, tinha sido preocupante. Esta grave imprudência condicionou tudo o que se lhe seguiu.

Para que se perceba, no dia 11 de março a ministra da Saúde Marta Temido ainda pedia aos jornalistas que não estimulassem o alarme social exagerado, ladeada pela diretora-geral de Saúde, Graça Freitas, que insistia na tecla de «que todos os dias morrem dezenas de pessoas em Portugal com pneumonia bacteriana», acompanhadas pelo Prof. Jorge Torgal, em representação do Conselho Nacional de Saúde Pública, que duas semanas antes dizia em entrevista que o covid-19 era menos perigoso que o vírus da gripe e existia um pânico completamente desproporcional à realidade. 11 de março, sublinhe-se.

Sucede que em meados de março, Itália já registava milhares de mortos. E este país só poderia servir de espelho, para o que cá se seguiria. Itália está bem mais longe da China, do que está de Portugal.

Quando neste contexto e apesar de tudo o que se sabia, no dia 26 de fevereiro o ministro Santos Silva declarava publicamente que Portugal estava preparado, era mais do que evidente que não estava. E não era difícil de ver.

Faltavam meios essenciais nos hospitais, onde muitos profissionais de saúde não tinham máscaras capazes, material desinfetante para mãos e superfícies, ou óculos de proteção. Quando hoje se utiliza a propósito uma linguagem bélica, tenha-se presente que obrigar profissionais de saúde a enfrentar a pandemia sem condições, equivale a mandar soldados para a guerra sem munições. E os números demonstram-no. Enquanto escrevo, de 9034 infetados, 1124 são profissionais de saúde.

Parte importante da resposta, assentou numa Linha Saúde 24 que colapsou aos primeiros embates, não atendendo chamadas e dando instruções erradas. Foi permitida vida normal a quem vinha do Norte de Itália e outros locais de risco, pessoas que relataram sintomas não foram encaminhadas para análise e depois testaram positivo em laboratórios privados e tão pouco foi ordenada quarentena a outras que contactaram doentes, caso do escritor Luis Sepúlveda. Consequentemente, pessoas infetadas puderam usar transportes públicos, ir a escolas e universidades, frequentar centros comerciais e outros locais públicos.

A TAP, de que o Estado é acionista, manteve até muito tarde voos regulares diários para Itália. E nenhumas restrições foram colocadas à entrada de quem daí provinha.

As mensagens orientadoras de comportamentos básicos aos cidadãos, remetidas pela DGS, só tiveram início em 17 de março e não antes da doença se instalar em Portugal, quando teria sido bem mais útil.

Insiste-se na desnecessidade do uso de máscara, ao contrário do decidido em países com melhor desempenho, exemplos do Japão ou da Coreia do Sul.

Mesmo agora, quando a transparência é essencial, a divergência entre o número de casos registados nos relatórios da DGS e os conhecidos nos concelhos, é profundamente anormal.

É evidente que temos de estar unidos, colaborar num esforço gigantesco de contenção da tragédia e de estar muito gratos a quem todos os dias tenta fazer alguma diferença, começando pelos profissionais de saúde. Mas também temos de ter memória. 

Nuno Melo
Eurodeputado do CDS