3.ª Reflexão quaresmal

Contrariamente às reflexões anteriores, escrevi esta última da série, após o eclodir da pandemia em Portugal e consequente assunção, sob influência internacional, de exigentes medidas destinadas a minorar efeitos sanitários e socioeconómicos. Impõe-se assim mudar de estilo, deixando analogias de entre linha. Entrámos em período de preocupante crise, onde há que dizer frontalmente quanto se constata e pensa. Bem fez Marcelo Rebelo de Sousa, ao anunciar o estado de emergência, em substituir a habitual flamante gravata celeste por uma azul noite, como aviso de que não mais haveria lugar para a demagogia folgaza da geringonça, em que se iludia o povo, dando como uma mão, o que se tirava com a outra. Vai-se sofrer agora a repercussão da atitude laxista, embora disfarçada em Bruxelas para ir rapando os fundos, de prioridades despesistas em detrimento da adequada resposta a notórias carências, especialmente nas áreas da saúde, educação, segurança e transportes. Tudo a par da propositada desarticulação entre o setor público, privado e social; desorganização generalizada; intoleráveis corporativismos desregrados; coincidência de frouxidão no Governo, instabilidade nas alianças parlamentares, oposição titubeante pela confusão entre saudável contraditório democrático e mera critica colaborante. O Presidente, ao mudar de aparência, demonstrava o fruto da reflexão a que procedera em quarentena voluntária, sem festividades, nem esdrúxulas evidencias de afeto. Ganhara reforçada maturidade, vinha dar-se ao respeito.

O PM, pelo contrário, sempre igual a si mesmo: dinâmico, sorridente, arrapazado. Em extensa entrevista televisiva, com a sua desgraçada tendência para a confusão conceptual, caracterizou, sem o pretender, o rigor científico como contrário ao bom senso, quando queria dizer senso comum. Pontapé de exposição, que só não ofendeu por não o tomarem a sério. Idêntica incapacidade de Costa para governar estrategicamente adiantando-se aos acontecimentos dada a previsibilidade. O desenrolar do drama sanitário comprovou-o amplamente pela miopia de não se aperceber do que estava para vir à semelhança do que já ocorria noutros países. Mantivemos as fronteiras e aeroportos sem controlo, atrasamos a aquisição de equipamento e mobilização de pessoal sanitário, puseram-se duas convencidas, mas não convincentes senhoras a tranquilizar a população, quando se impunha o aviso sem meias verdades. Chegou tarde o sonoro toque a rebate, em grande parte por iniciativa de Marcelo e alerta da comunicação social. Foram-se avolumando sinais de que ‘se iria ouvir a latente voz da maioria silenciosa’. Uma vez mais, me socorro de Agostinho de Hipona, quando lembrava: mesmo quando durmo, estou vivo. Vale para a pessoa, como para o povo.

Penosa vai ser a comemoração do 25 de Abril que se aproxima; mais ainda a do 1.º de Maio. Seguir-se-á o vazio em Fátima no dia 13, o silêncio a 10 de Junho, ausência das festividades durante os santos populares, as dificuldades no pagamento dos salários, mesmo em regime de lay-off, no final do mês de junho. Tudo a apontar para uma instabilidade política notória antes do Verão. Prevejo que o Presidente se verá impelido a agir, ou pela promoção de um atrofiante pacto entre as atuais lideranças partidárias, ou de preferência pelo adiantamento das eleições legislativas fazendo-as coincidir com as escolhas autárquicas numa campanha comum, mais incisiva e menos dispendiosa. Confiemos que não cresça a pressão radical de direita, já que não resulta fácil detetar quem está por detrás dos arautos sedutores. Todavia, obstaculizar essa influência nunca será viável pela tentativa de robustecer o correspondente radicalismo de esquerda, aliás também este predominantemente nacionalista e demagógico. A barreira eficaz consistirá sim na consolidação do crescente projeto cosmopolita de vanguarda de inspiração liberal. Aliás, muitos ex-social democratas estão a vir reforçar o movimento ao constatar a inviabilidade do que antes defendiam num clima de irreversível globalização. Daí que a dicotomia tradicional entre direita e esquerda, dê cada vez mais lugar à demarcação entre estatismo e sócio liberalismo. Já Locke defendia no tratado do contrato social a legitimidade da insurreição perante a usurpação do poder.

A denominada aldeia global favorece encarar com fortaleza de animo o alvoroço do progresso a por termo, entre nós, a uma persistente adolescência democrática de 46 anos de promessas vãs e resultados inquietantes. Estamos cansados de figurar no antepenúltimo lugar do ranking comunitário europeu, quando somos um país de média dimensão territorial, vastíssima plataforma marítima, com milhões de imigrantes ou luso descendentes espalhados pelos cinco continentes. Haja brio a partir do dealbar da década de 2021 pondo fim ao complexo de pátria endividada e carente. Platão ensinava que o mal não tem natureza própria, ou como preferia dizer: princípio causal. Resume-se tão só à perda de integridade, beleza, saúde ou virtude. Pode-se assim voltar sempre ao de cima. Contudo, nunca se deve confundir renovação com simples evolução na continuidade, porque esta acaba sempre – sei-o bem – por não haver continuidade na evolução. Há que passar o Rubicão para se tirar Roma do caos, permita-se-me a metáfora. 

Concretamente, torna-se indispensável valorizar o papel da sociedade civil consagrando os estatutos de cidadão/eleitor e cidadão/contribuinte. Libertemo-nos em Portugal do asfixiante jugo partidário na escolha de deputados e autarcas, por exemplo. Revoltemo-nos, sobretudo os que somos moderados nos gastos pessoais e familiares, contra despesas supérfluas do aparelho do Estado, sem avaliação de custo/benefício de nomeações como as de setenta membros do governo, quando trinta seria desejável, até para evitar conflitos positivos e negativos de competência; cinquenta deputados a mais do que a Constituição veladamente recomenda; administradores inúteis em entidades públicas; viagens sem apuramento das vantagens alcançadas; recusa na avaliação de quadros superiores; fuga a concursos públicos; submissão a processos burocráticos geradores não só de atrasos, mas de favoritismo e até corrupção. Sem me querer alongar, destacarei, porém, a prioridade à diminuição da carga fiscal favorável ao investimento, poupança e consumo racional. Acima de tudo, a consagração da competência no duplo significado do tema que envolve qualidade, mas também competição. O lema do triângulo virtuoso de Liberdade, Ordem e Progresso, que há dois séculos modernizou Portugal e viabilizou o Brasil como país irmão consolidando a universalidade da cultura lusíada. Será isto viável? Creio sinceramente que sim; basta darmos com determinação os corretos passos. Escolhi a palavra propositadamente.

Termino a série de reflexões quaresmais nas vésperas da Páscoa, que configura para a cristandade a Ressurreição, mas é generalizadamente entendida como sinal de fertilidade simbolizada no ovo, que não sabemos, tal como a relação entre vida e morte, se vem antes ou depois. Vale a Pena não ter Medo*, a pestilência passa e o Homem fica.

*Título de um livro do autor

Joaquim Silva Pinto

Gestor