Os dias seguintes ao vírus…

Em pouco mais de três meses a vida mudou radicalmente. E interrogamo-nos, sem grandes respostas, exceto uma: todos vamos suportar, uns mais do que outros, uma austeridade sem precedentes no pós-guerra. 

Um vírus silenciado tempo demais pela China deu a volta ao mundo e empurrou milhões de pessoas para uma clausura forçada, temendo serem as próximas vítimas.

Sistemas de saúde e políticos, empresas e economias, estão a ser postos à prova, enquanto ninguém sabe ao certo quando esta odisseia termina, nem como. 

Em pouco mais de três meses a vida mudou radicalmente. E interrogamo-nos, sem grandes respostas, exceto uma: todos vamos suportar, uns mais do que outros, uma austeridade sem precedentes no pós-guerra. 

Se a União não se desmembrar na Europa, e se houver um módico de solidariedade para acudir às aflições dos membros mais débeis, talvez a recuperação da doença se faça com dor mitigada. 

Mas se prevalecerem os egoísmos, dilatados por vários ‘ismos’, dos nacionalismos aos populismos, assistiremos à queda inexorável de um sonho e ao renascer de pulsões autoritárias, com a instalação de regimes musculados, aproveitando a embalagem da emergência e o pavor das populações perante a incógnita. 

Poderá parecer uma visão apocalíptica ou, no mínimo, pessimista. Mas o formidável desafio civilizacional que se desenha não augura nada de muito diferente. 

A nível global, observe-se como se esbateram – ou se evaporaram mesmo – os conflitos regionais, anteriormente dominantes na narrativa mediática. Nem no boletim diário da ONU se avistam – agora preenchido, quase em exclusivo, pelos ecos do coronavírus. 

Esfumaram-se, também, os grandes debates em redor dos milhões de refugiados nas fronteiras da Europa, empurrados pela Turquia de Erdogan; ou sobre os barcos à deriva no Mediterrâneo, carregados de gente; ou sobre as alterações climáticas (a paixão de Guterres…). Nem se fala, até, da saída consumada do Reino Unido da União.

De repente, as ‘causas’ que mobilizavam as esquerdas há escassos meses, desde as questões de género à eutanásia, perderam-se na irrelevância. 

Tudo mudou vertiginosamente, e hoje – nem sequer chegados ao ‘planalto’ da crise sanitária – só um inconsciente ou um pateta duvidarão do que nos espera nos dias seguintes, no refluxo do ‘tsunami’ do coronavírus, quando fizermos o balanço de tudo o que perdemos, em vidas e futuro. 

Depois, há momentos e desafios na História dos povos em que o drama vivido é tão avassalador que muitos atores, supostamente inamovíveis, se somem sem deixar rasto. 

A «repugnância» pelo primeiro-ministro no Conselho Europeu, ao ouvir o ministro das Finanças holandês distanciar-se das dificuldades orçamentais espanholas para acudir aos efeitos da pandemia, estranha-se mas depois ‘entranha-se’. 

Afinal, o episódio tem antecedentes, com outros governantes holandeses.

Quem não se lembra, por exemplo, da entrevista a um jornal alemão do antigo presidente do Eurogrupo, também holandês e titular das Finanças, de nome impronunciável, quando em plena crise do euro, em 2017, acusava os países do Sul de esbanjarem dinheiro «em mulheres e álcool» e depois virem bater a porta da solidariedade europeia «a pedir ajuda»?

Jeroen Dijsselbloem, assim se chamava o holandês, ficou no centro da polémica e ‘debaixo de fogo’, sobretudo por parte de eurodeputados espanhóis. Mas nunca pediu desculpa. Limitou-se a elogiar os países do Norte, cumpridores das regras orçamentais, e a lamentar a displicência dos latinos. 

A indignação de António Costa repetiu a de Augusto Santos Silva à época, quando este considerava que Dijsselbloem «não tem nenhumas condições para permanecer a frente do Eurogrupo». 

Como se vê, a ‘azia’ do Governo português com os holandeses já é antiga… 

A solidariedade europeia está a falhar com a Espanha, como falhou estrondosamente com a Itália nesta crise sanitária. E António Costa tem razão quando receia que a UE se desmembre, no caso de não ser capaz de socorrer os mais fustigados. 

Bruxelas precisa de encontrar fórmulas para ‘resgatar’, solidária, a Europa ao vírus, ou este mata a Europa democrática, como a conhecemos e construímos ao longo de décadas. 

Enfrentamos um problema global e convirá não embarcar na retórica da eficácia chinesa no cerco ao vírus, quando este se espalhou descontrolado em Wuhan, perante o silêncio imposto a médicos e aos media, até serem desencadeadas medidas draconianas de contenção, só possíveis em ditadura.

A ironia trágica é ouvir-se gabar essa atuação, a tapar a verdade, enquanto se tolera a campanha de marketing, estampada em cada avião que aterra, com equipamento de proteção vendido à Europa, contagiada pela ‘peste chinesa’.

Mesmo sem recorrer a teorias de conspiração, é óbvio que a China tem vindo a ganhar terreno a nível planetário, aproveitando-se do bem-sucedido modelo inventado por Deng Xiao Ping – um país, dois sistemas – e investindo, de uma forma metódica, em áreas e empresas estratégicas. 

Tem dinheiro para o fazer, aproveitando o mercado em baixa e as vulnerabilidades das democracias ocidentais, e ainda lhe sobra para doações cirúrgicas, encaminhadas para países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. 

Portugal não é exceção, como se sabe, na teia dos interesses centralizados em Pequim. A opacidade e a tenaz chinesas progridem sem perturbar as nossas ‘cabeças bem-pensantes’, demasiado entretidas à cata dos dislates de Trump ou de Bolsonaro…