Tancos. O caso que o vírus não pára

Conduta ‘eivada de ilegalidade’, produção de ‘documentos falsos’ e omissões a juízes. Ex-diretor da PJM e sargento da GNR acusam agora PJ e  MP de terem praticado os crimes que lhes são imputados no caso Tancos.

Opaís parou com o novo coronavírus, mas o processo Tancos continua – com o juiz Carlos Alexandre a agendar para o dia 21 o interrogatório de um dos principais arguidos, João Paulino. Mas as defesas também não têm permitido que o processo arrefeça. Nas últimas semanas, apurou o SOL, o sargento Caetano Lima Santos, à data dos crimes responsável pelo núcleo de investigação criminal da GNR (NIC) de Loulé, entregou um requerimento surpreendente no Tribunal Central de Instrução Criminal no qual acusa a Polícia Judiciária e o Ministério Público de terem cometido ilegalidades e conduzido o processo sem «boa fé», defendendo mesmo que os investigadores da PJ civil controlaram o plano do assalto aos Paióis Nacionais de Tancos. A dura posição de Lima Santos foi entretanto subscrita pelo antigo diretor-geral da Polícia Judiciária Militar, Luís Vieira, o homem que ordenara uma investigação paralela à da Polícia Judiciária e do MP – esta última determinada pela ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal – para recuperar o material furtado. Segundo a acusação do Ministério Público, Luís Vieira foi, aliás, um dos cérebros por trás da farsa do achamento forjado das armas na Chamusca – um plano que contara com a concordância do ex-ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes.

Requerimento explosivo entregue durante a pandemia

Lima Santos entregou a meio de março um requerimento ao juiz Carlos Alexandre, que tem a seu cargo a instrução deste processo, no qual afirma que é «evidente que a conduta do Ministério Público e da Polícia Judiciária está eivada de ilegalidade». 

O documento começa por referir que a PJ soube do assalto através de Paulo Lemos – conhecido como ‘Fechaduras’ –, tendo não só optado por manter este como informador anónimo como ainda por, através dele, controlado «o momento e o modo de realização do assalto». Tudo isto, diz a defesa, sem informar o Ministério da Defesa Nacional.

Lima Santos afirma que a fonte que informou a PJ de que o assalto ia acontecer, ‘Fechaduras’, nunca pedira anonimato, ao contrário do que fora sempre afirmado por escrito. «Em 07/04/201 o inspetor R. Sousa da PJ do Porto, elaborou e assinou uma informação, que deu origem ao proc. 48/17.6JBLSB, na qual referiu que a denúncia foi feita por pessoa que prefere anonimato e que dá conta que obteve informação de que iria ocorrer um furto em instalações militares», lê-se no documento, que acrescenta: «Não referindo e omitindo se foi o inspetor [da PJ] Chantre ou se ele mesmo que falou com a fonte».

A defesa de Lima Santos insiste, porém, nas declarações da procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto Teresa Morais, que disse ter sido contactada por Paulo Lemos, tendo feito «a ligação entre aquele e o inspetor Chantre, a quem ‘Fechaduras’ prestou declarações».

Fonte anónima ou conhecida?

«Esta informação inicial que deu origem aos autos, foi o primeiro documento falso elaborado pela PJ, no qual ocultaram que afinal a informação vinha de uma fonte identificada e não anónima, bem como todos os contornos que o Fechaduras relatou e que deu a conhecer aos inspetores, fazendo-se constar uma mentira num documento oficial e autêntico», acusa a defesa de Lima Santos, acrescentando que o próprio Paulo Lemos estranhou, tanto em sede de inquérito como de instrução, quando foi questionado sobre o seu anonimato: «Paulo Lemos nunca solicitou o anonimato».

O requerimento entregue há dias diz mesmo que os juízes de instrução que foram tendo o caso em mãos acabaram por ser enganados por pensarem que se tratava de um processo com origem numa denúncia anónima e desconhecendo todo o trabalho de bastidores dos investigadores da PJ. O tom endurece com a defesa a dizer que os investigadores atuaram «como verdadeiros titulares do inquérito».

«Mais, quando os autos chegaram ao Meritíssimo Juiz Ivo Rosa, também este foi enganado com tal falsidade, referindo que os autos se iniciam com a denúncia anónima, o que não era suficiente, na ausência da produção de outros elementos de prova ou elementos indiciários, para autorizar as requeridas escutas telefónicas», referem, insistindo que foi ocultada informação.

Referindo outras informações  posteriores também atribuídas a fontes anónimas, Lima Santos questiona qual a intenção dos investigadores ao não referirem nunca que Paulo Lemos havia sido contratado para participar no assalto, neste caso para ajudar a abrir as portas dos Paióis.

«Além de falsificarem documentos oficiais e autênticos […] estavam a protegê-lo da participação que teve, a qual apenas podemos imaginar», diz a defesa, adiantando que este, pelo menos, «ensinou e orientou os restantes assaltantes, através de diretivas e explicações que lhes deu, para conseguirem ultrapassar o obstáculo principal, que era o da abertura dos paióis».

«Todas estas informações falseadas com a conivência dos srs. procuradores do MP, todos eles cientes de que estariam a alterar a verdade dos factos e a ocultá-los dos meritíssimos juízes e agora, que o processo é quase público, de todas as entidades governamentais, do povo, da comunicação social, etc…», lê-se.

A defesa fala ainda na forma informal como tudo foi feito, nomeadamente como a procuradora Teresa Morais, do DIAP do Porto, tratou o caso de modo informal empurrando-o para um inspetor da PJ que conhecia pessoalmente. E frisa ainda que ‘Fechaduras’ «recebeu instruções dos inspetores […] para atrasar o assalto (atrasou-o duas vezes por indicações dos inspetores da PJ) e que o foi tentando atrasar nos contactos que tinha com os assaltantes».
A defesa refere ainda que houve instigação à prática de crimes, com Paulo Lemos a apresentar aos assaltantes elementos que se faziam passar por pertencentes à organização IRA, com o intuito aparente de comprarem granadas. «Se a PJ e o MP tivessem agido de boa fé e legalmente o assalto aos paióis nunca teria acontecido», refere o requerimento, concluindo que «a PJcontrolou o plano [do assalto] e a sua execução, permitindo a sua consumação».
Na prática, com este requerimento,Lima Santos vem participar à Justiça que a PJ e o MP terão cometido os mesmos crimes que foram imputados à PJM e à GNR.

O achamento forjado pela PJM, GNR e… Azeredo Lopes

O material furtado de Tancos em junho de 2017 acabou por aparecer em outubro, mas a investigação continuou. E continuou em duas frentes: no inquérito inicial, para apurar as circunstâncias do roubo; e num outro inquérito em que se pretendia passar a pente fino a forma como a Polícia Judiciária Militar recuperou o material.

No final, a acusação foi arrasadora para os elementos da PJM e da GNR. Nas horas anteriores à ‘descoberta’ das armas de guerra, a PJ Militar pedira à sua Unidade de Apoio Técnico e Administrativo a preparação de uma carrinha sem bancos de trás, o que para a acusação demonstra que sabiam o que iam fazer. Aliás, na véspera do achamento, às 16h43 de 17 de outubro de 2017, Pinto da Costa, Lage de Carvalho (ambos do pólo do Porto da PJM), Lima Santos, Bruno Ataíde e José Manuel Gonçalves (os três na GNR) foram à Chamusca nessa Mercedes Vito para fazer o reconhecimentos do local onde iriam ser colocadas as armas para serem ‘encontradas’ por eles horas mais tarde. 
Foi com essa Mercedes Vito da PJM que Bruno Ataíde e Lima Santos foram buscar as armas a Tomar e colocá-las no local onde viria mais tarde a ser encontradas. Às 2h38 do dia 18, sem muitos desvios ao planeado, a Mercedes Vito chega à Chamusca e deposita o armamento bélico, que vem dentro de caixas. Segundo a acusação, Paulino e Laranginha (dois dos principais suspeitos pelo roubo) não entregaram todo o material furtado, nomeadamente 1450 munições 9mm, um disparador de compressão, duas granadas de gás lacrimogéneo, três granadas ofensivas, entre outras armas. 

Depois, um elemento da PJM, José Costa, ligou de uma cabine em Alcochete com a voz disfarçada a fazer a denúncia e Vasco Brazão recebeu-a na central da PJM. A partir daí foram para o local os elementos que estavam feitos com a farsa e as perícias realizadas por Nuno Reboleira, diz a acusação, foram mal feitas de propósito para que nunca se chegasse à identidade de quem tinha depositado ali as armas. Tudo foi feito sem o conhecimento da PJ e do MP, o que perplexos os titulares da investigação formal.

A acusação dá conta de que Azeredo Lopes sabia que a PJM estava a conduzir de forma paralela à oficial.
Após a acusação foi aberta a fase de instrução, cujos trabalhos não têm parado. Além de agendar para este mês o interrogatório de Paulino, o juiz  Carlos Alexandre marcou ainda o debate instrutório para 4 e 5 de maio.